Marcelo Lemos
Sem o menor sentimento de culpa admito que me tem sido coisa rara a afirmação "sou evangélico". Nem sempre foi assim. Houve tempos, já escondidos pela névoa do tempo, nos quais eu sentiria santo orgulho de tal identificação: que saudades! O tempo não para, dizia o poeta. E o tempo passou, sem muita poesia, assassinando poetas, e consagrando, quase sempre, gente cuja poesia maior é dedicada a ídolos. Nos esquecemos da primeira regra do Decálogo: adoramos personalidades, a nós mesmos, o sucesso, o dinheiro, o poder, os títulos eclesiásticos... Diante de Deus, nós, e nossos muitos deuses.
Recentemente questionaram qual minha opinão sobre o Padre Fábio de Melo, o cabeleira de gel, sem batina, que vive dizendo que tudo é "liiiiindo!", ter dito: "Eu também sou Evangélico!". Não deixa de ser uma declaração bonita e, quiçá, fruto de algum amadurecimento proporcionado em tempos pós Vaticano II. Tudo muito "liiiiiiindo!". Admitamos, por mais anti-catolicos sejamos, nada é tão prazeiroso que ouvir um padre reconhecendo que a salvação é por Graça, e que nossa missão principal é anunciar o Evangelho de Cristo. No entanto, creio que o padre precisa dar uma atualizada na cabeleira, já que a idéia que ele tem sobre o que é ser "evangélico" está defasada há, no mínimo, uma década e meia! Atualmente, ser evangélico pode significar qualquer coisa, o que nos leva a significado nenhum. Eis o grande mal dos evangélicos de nosso tempo: crise de identidade. A única coisa que o evangélico mediano parece saber sobre si mesmo, via de regra, inclui: que sua denominação é, em algum sentido, melhor; que ele é filho da promessa; que ele tem o selo da promessa, e que apesar de não ser dono do mundo, é filho do Dono! Não é "liiiiindo, minha gente"?
Assim, minha primeira razão para deixar de ser evangélico está no fato de que essa gente, os evangélicos, não sabe o que ser evangélico significa. Pergunte a maioria de seus amigos evangélicos: o que é o evangelicalismo? Qual sua origem? Quais seus postulados? Faça um teste, e comprove: quase absoluta ignorância. Somos uma geração que nada sabe sobre os Grandes Depertamentos, ou sobre nomes consagrados de nossa tradição evangélica, como Jonathan Edwards, John Wesley, Charles Finney, Dwigth L. Moody, etc. Nem mesmo o contemporâneo Billy Granham escapa imune a nossa ignorância crônica. Aliás, o Billy só volta ao imaginário dos "gospi" quando algum aloprado escatólogico faz malabarismo para associá-lo a sociedades secretas, e a complôs promotores do Anticristo... Em contrapartida, sabemos tudo sobre espiritos territóriais, ex-satanistas, ex-noivas-do-Capeta, símbolos satanistas ocultos, pregadores-sem-língua, maldições hereditárias, e, claro, campanhas de Sementes, com Bíblias superfaturadas.
Por falar em Bíblia, eis minha segunda razão para deixar de ser evangélico: somos um povo ignorante das Escrituras, e da Teologia! Não só isso, além de ignorantes, temos orgulho do fato! Dia após dia, cresce a idéia de que um cristianismo realmente bíblico, que segue o modelo da Igreja Primitiva, é um cristianismo anti-intelectual. Canonizamos a ignorãncia. Tal blasfêmia sempre esteve presente, com honrosas excessões, na religiosidade pentecostal (de onde eu venho), mas não é privilêgio apenas daquele grupo, infelizmente. Mas, como pentecostal de berço, vou me ater ao que diz respeito a minha experiência mais imediata. "Igreja do Senhor!" - esbraveja o falastrão: "eu tinha um sermão prontindo para vocês esta noite; porém, quando eu chegei neste lugar, o Espírito Santo mudou tudo – fez aquele rebuliço! Por isso, quero lhes dizer que tenho uma mensagem vinda diretamente do céu para vocês! Hoje, eu não quero nada com Teologia: Deus vai falar diretamente com você!”.
Só tem um nome para isso: apologia da burrice. Atitude que não encontra nenhum paralelo no exemplo deixado por Jesus Cristo: "E, começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que deles se achava em todas as Escrituras” (Lucas 24.27).Que ousadia têm aqueles pregadores e cristãos que desprezam o saber teológico, preferindo em seu lugar qualquer outra coisa, como experiencias e emoções! Eles se acham melhores que Cristo? Eles se consideram mais eficazes que o próprio Senhor, a quem dizem servir e amar? Do contrário, não é certo que deveriam seguir Seu exemplo? Como se atrevem a desprezar aquilo que Seu Deus valorizou?
Intimamente relacionado ao que foi dito acima, identifico minha terceira razão para deixar de ser evangélico. Aqui, um boa dose de cautela, pois estarei pisando em terreno perigoso. Inicio meu argumento com uma exemplificação: que dirá um cristão evangélico contra um cristão católico que, por exemplo, acredita em Purgatório? Resposa bem fácil: "A Bíblia não fala nada sobre um Purgatório, meu filho, acorda!". De fato, e não falando, os evangélicos se recusam a se submterem a um dogma extra-bíblico. Sabem o motivo? É que um dos pilares do Evangelicalismo vem direto da Reforma Protestante: o sola scriptura, segundo o qual, nada do que não esteja explicitamente ensinado nas Escrituras possa ser imposto aos crentes. Mas, ironicamente, aqui nasce um problema para os evangélicos de nossos dias: quando se trata de passar suas próprias tradições e práticas pelo crivo das mesmas Escrituras, ele rapidamente se saírão com a excusa de "não julgueis para não serdes julgados", ou qualquer imbecilidade como "cuidado, o cara é ungido Senhor; e não se deve tocar nos ungidos". Santa hipocrisia!
Ainda sobre isto há mais a se dizer: não apenas usamos o Sola Scriptura na balança da hipocrisia, como também o elevamos a um status de ídolo cego e manco. Calvino? Wesley? Spurgeon? Agostinho? Cramer? Confisões de Fé? Livros de Oração Comum? Não precisamos de nada, nem de ninguém, só das Escrituras! Conseguem perceber o desvirtuamento, a falsidade insinuante? Inventamos a idéia de que ter a Bíblia como regra suprema de fé implica na rejeição do que Deus, por Seu Espírito, fez durante séculos de cristianismo! Porém, se alguém ousar questionar o desatino anti-biblico de algum apóstolo moderno, temos resposta rápida e eficaz: "Cuidado com a Letra, abra seu coração para o mover do Espírito!". Nada mais nos interessa, ao menos, nada que tenha acontecido antes do nosso profeta, apóstolo ou bispa preferidos.
Admito, meus queridos, que há gente na Igreja Brasileira que ainda faz jus ao título "evangélico". É possível que os mesmos sintam-se injustiçados com minhas generalizações. Me solidarizo, acreditem. Infelizmente, por mais triste que seja, o termo evangelico perdeu seu valor, não por si mesmo, mas pelo mau cheiro de quem não lhe soube extrair o perfume. E, cá entre nós, nada mais eficaz para despetar um moribundo que uma boa descarga eletrica no peito: ou acorda, ou bate as botas de vez!
De modo que, tomo a liberdade de me definir como "um cristão, a favor do Evangelho, mesmo que precise ir contra os evangélicos". Peraí! Acho que isso é bem Evangélico, com E maiúsculo, não acham?
Marcelo Lemos é mais um desviado que resolveu ser subversivo do Reino e caiu aqui no Genizah
fonte Genizah
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