terça-feira, 29 de novembro de 2011

Um Deus à altura dos desafios da realidade (Isaías 40-55)

Júlio Paulo Tavares Zabatiero

Introdução

A destruição de Jerusalém e do Templo no monte Sião, bem como o fim do
reinado davídico e as deportações para a Babilônia, configuraram uma situação
nova para o povo de Judá, especialmente para os seus dirigentes e para todo o
pessoal mais diretamente ligado à corte davídica, tais como sacerdotes,
comerciantes, lideranças militares, “anciãos” grandes proprietários de terras, bem
como as mulheres e crianças em suas famílias. Nessa nova situação, a identidade
do povo judaíta1 foi abalada fortemente, especialmente em seus elementos
teológicos – tais como a crença na inviolabilidade de Sião, a fé no poder de Javé
em manter a dinastia davídica no trono, bem como a independência de Judá. Os
conteúdos teológicos e os aspectos existenciais da fé em Javé já não mais davam
conta dos desafios da situação, não contribuindo mais para a manutenção e
desenvolvimento da identidade do povo de Deus. Várias foram as respostas à
necessidade de reconfiguração da identidade, dentre elas, a que encontramos nos
capítulos 40-55 do livro de Isaías, que são reconhecidos predominantemente como obra de um (ou mais) autor(es) desconhecido, no período final da dominação babilônica, ou nos primeiros anos da dominação persa.

1 Que adjetivo pátrio aplicar ao “povo de Javé” é, por si só, um problema historiográfico. Judá não era o nome
nacional pelo qual os judaítas se reconheciam, mesmo após a “divisão do reino” (I Rs 12ss) – no próprio
Dêutero-Isaías se usam o nome Israel e o termo tradicional Jacó ou “casa de Jacó”. Judá se torna o nome da
região no período persa, pelo que se nomear seus habitantes como “judaítas”. O termo “judeu” é preferível para
designar os membros do “povo de Javé” após a reconstrução de Jerusalém no período de Esdras-Neemias. Neste
artigo, utilizo predominantemente o termo “judaíta”, no sentido mais neutro de habitantes da região conhecida,
posteriormente, como Judá. Conseqüentemente, “israelita” será o termo usado preferencialmente para os
habitantes do antigo “reino de Israel”. No caso das tradições teológicas, prefiro então usar o termo composto
judaico-israelita.

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A principal novidade teológica de Isaías 40-55, com forte impacto para a
reconstrução da identidade judaíta, é a sua redescrição de Javé, o deus dos judaítas e israelitas. Com seu estilo mais emotivo, von Rad expressou opinião semelhante, ao se pronunciar sobre a mensagem do profeta:
Javé ainda não havia falado deste modo pela boca de um profeta.
Jamais também se inclinou tão profundamente, em suas palavras,
para se aproximar de seu povo, jamais se despojou de tudo o que o
fazia temível, para não amedrontar nenhum daqueles que haviam
perdido a coragem. [...] O segundo-Isaías encontrou fórmulas que
revelam o coração de Deus duma maneira que causa espanto.2
O novo contexto, da dominação babilônia, demandou uma resposta
teológica à altura dos novos desafios colocados sobre a fé em Javé. A destruição
dos reinos de Israel e Judá, as mudanças populacionais e deportações, a derrubada da dinastia davídica, a destruição do Templo, a vida em novos ambientes – tudo isto precisava ser interpretado e colocado em perspectiva teológica. E nesse esforço de interpretação, a descrição de deus não podia deixar de ocupar lugar preponderante – na medida em que as bases da fé em Javé, conforme estabelecidas na teologia davidida e sionista, foram abaladas por todos esses acontecimentos.
Devemos estudar a redescrição3 de Javé em Isaías 40-55 como um
extraordinário esforço intelectual e existencial para dar conta desses desafios.
Esforço que, por um lado, deveria reinterpretar e reconfigurar as crenças
tradicionais em Javé; e, por outro, criar novos modos de falar de Javé em resposta à teologia dos babilônios. Dar novo sentido à situação de exilados e derrotados era

2 Von RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento. vol. II. São Paulo: ASTE, 1974, p. 240.
3 Uso o termo “redescrição” em sentido apropriado de Richard Rorty que, com o termo, destaca o papel da
filosofia como um pensamento não fundacional-metafísico. A redescrição está ligada à adoção de novo
vocabulário que permite o auto-crescimento e a adoção de um diferente conjunto de valores. Exemplos de
adoção de novo vocabulário, em Isaías 40-55, são a preferência pelo verbo ga'al ao invés de yatsa' e natsal para
se referir ao êxodo; o uso constante dos pares Israel/Jacó e Jerusalém/Sião; o uso dos verbos criar e formar para
se referir à libertação de Israel. Nessa linha de pensamento, tanto a filosofia como a teologia deveriam ser vistas
como buscas de justiça e não de verdade: “Se pararmos de pensar na verdade como o nome da coisa que dá
significado à vida humana, e pararmos de concordar com Platão em que a busca da verdade é a atividade humana
central, então poderemos substituir a busca da verdade pela esperança messiânica de justiça.” RORTY, Richard.
“Para emancipar a nossa cultura (Por um secularismo romântico)”. In: DE SOUZA, José C. (org.) Filosofia,
racionalidade, democracia. Os debates Rorty & Habermas. São Paulo: Unesp, 2005, p.88.

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o grande desafio teológico a ser enfrentado. Uma nova descrição de Javé foi o
passo principal nesse processo de reconstrução da identidade judaíta sob a
dominação babilônica.

1. A redescrição de Javé vis-a-vis o discurso babilônico sobre seus deuses

4
“Parece que a mensagem central de Isaías 40-55 pode ser construída como uma
espécie de imagem-de-espelho da ideologia expressa na liturgia akitu e no mito
Enuma Elish. O fato de que as únicas divindades estrangeiras nomeadas nestes
capítulos sejam Bel e Nebo – isto é, Marduque e seu filho Nabu (46,1-2), os
protagonistas divinos no festival akitu – apóia esta leitura do texto.”5

Não farei uma análise detalhada das relações intertextuais e
interdiscursivas que ligam Isaías 40-55 e textos mesopotâmicos do período.
Apresentarei apenas alguns exemplos que devem servir para nortear a descrição,
posterior, das características da crença em Javé no segundo Isaías.
Já no prólogo do Segundo Isaías (40,1-11), a polêmica contra a teologia
babilônia, especialmente contra Marduque6, se faz evidente. Isaías 40,1-2 apresenta Javé misericordioso, colocando fim aos “trabalhos forçados” do seu povo, justa punição sobre os seus pecados – com linguagem que lembra a seguinte passagem sobre Marduque, no tablete VII do Enuma Elish: “Ele é Agaku, o amor e a ira; com palavras vivazes ele apressa a morte, ele teve pena dos deuses caídos, ele diminuiu os labores que caíam sobre os adversários.” Isaías 40,3-5 redescreve a procissão triunfal dos deuses para/na cidade da Babilônia, como a procissão triunfal dos judaítas exilados retornando à sua terra – imediatamente seguida de uma declaração da fragilidade dos poderes humanos (40,6-8; cp. 47,1-15 que descreve a

4 Ao final do texto, anexei uma tradução da Tábua IV do Enuma Elish.
5 BLENKINSOPP, J. Isaiah 40-55: a new translation with introduction and commentary. New York:
Doubleday, 2002, p.107.
6 Veja o artigo de T. Abusch “Marduk” em TOORN, K. E outros (eds.) Dictionary of deities and demons in the
Bible. Leiden: Brill, 1999, p. 543-549. Para uma descrição genérica da religião mesopotâmica e sua relação com
a política, v. CARDOSO, Ciro F. S. Antiguidade Oriental: Política e Religião. São Paulo: Contexto, 1990,
especialmente p. 9-50); e GARELLI, Paul & NIKIPROWETZKY, V. O oriente próximo asiático. Impérios
mesopotâmicos-Israel. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1982.

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queda da Babilônia)7. À saída dos judaítas do exílio (que corresponde
inversamente à entrada dos deuses na Babilônia), corresponde a procissão de Javé para voltar a reinar em Jerusalém/Sião, brevemente descrita em 40,9-11. O
evangelho às cidades de Judá, declarando que Javé é rei, contradiz diretamente a
aclamação de Marduque como rei.8 Em 51,9-11, a descrição da procissão feliz dos exilados de volta a Sião é precedida pela descrição da vitória de Javé no êxodo, estilizada à luz da cosmogonia babilônica da luta entre deuses. A historicização do combate criador mediante sua inserção na tradição do êxodo é mais um exemplo da vitória de Javé sobre Marduque. Pouco depois, em 52,7-10, reafirma-se a realeza de Javé (em contraste com a declaração da realeza de Marduque no Enuma Elish IV,28), que está na base da saída dos exilados, exortados a não permanecerem na Babilônia (52,11-12). Em contraste com esta feliz saída, há uma breve descrição da saída de Bel e Nebo da Babilônia, derrotados por Javé, deus incomparável (46,1-7, cf. 40,18.25; 43,11; 44,6-8; 45,5-6.14.18.21-22; 46,9; textos que estão em relação polêmica com as afirmações sobre a grandeza incomparável de Marduque no Enuma Elish, e.g., VII, 14.889). A afirmação de Javé como criador do mundo e salvador de Israel (cf. 40,12.26.28; 42,5; 43,1.15; 44,24; 45,7-8.12.18; 48,12-13; 51,13.16) também pode ser vista nos termos da polêmica contra a cosmogonia babilônica, que retrata a criação do mundo como fruto de uma guerra entre deuses, vencida por Marduque ao matar Tiamate (a deusa “mar”), e que cria o mundo para que a humanidade

7 Nosso conhecimento do ritual do Akitu, a Festa do Ano Novo, é relativamente fragmentário. Para uma primeira
aproximação ao tema, v. o artigo de Tikva Frymer-Kensky, “Akitu”, em ELIADE, M. (ed.) The Encyclopedia of
Religion. Nova Iorque: Macmillan, 1987, vol. I, p. 170-172.
8 No tablete IV: “Ele falou e a aparição desapareceu. Novamente ele falou, e a aparição reapareceu. Quando os
deuses deram-se satisfeitos por Marduk ter provado a força de sua palavra, os deuses ancestrais abençoaram-no e
bradaram: MARDUK É REI!”
9 “Como ele, não tem igual na assembléia”; “Ele é ARANUNNA, o conselheiro, com seu pai EA sem igual em
seus modos soberanos, ele criou os deuses.”

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passe a servir aos deuses10. Neste contexto polêmico, a descrição do von Rad
possui bem mais sentido:
... para ele, a criação é o primeiro dos milagres históricos de Javé,
testemunha a seu modo a vontade de salvação de Javé. ... O
segundo-Isaías nos fornece uma prova impressionante desta
concepção 'soteriológica' da criação: fala da mesma forma de Javé,
Criador do mundo, como de Javé, Criador de Israel. Javé é o
Criador de Israel no sentido de que chamou este povo à existência
enquanto criatura, e sobretudo porque o 'escolheu' e o 'resgatou'. [...]
Quando, num hino, atribui a Javé os predicados de Criador e de
Redentor de Israel, não faz alusão a duas atividades distintas, mas a
uma só: o acontecimento salutar que permitiu a Israel sair do Egito
(Is 44,24; 54,5).11
O sentido salvífico da criação (e sua respectiva historicização) não precisa ser
entendido a partir de uma concepção teológica moderna, como, e.g., a “história da salvação”12; pode ser percebido contextualmente na polêmica contra o sentido
“escravizador” da criação do mundo e dos seres humanos por Marduque e demais deuses babilônios. Pode-se incluir aqui, também, a afirmação de que Javé não precisa de conselheiros (40,13-14; 41,28), que contrasta com a afirmação de que Marduque é conselheiro dos deuses: “Ele é Kinma, conselheiro e líder, seu nome traz terror aos deuses, o rugido do tornado” (Tábua VII).
Neste campo semântico também devemos incluir as afirmações sobre Javé
como “deus eterno” (40,28), “deus de toda a terra” (54,5), “soberano Senhor”
(51,22), que atribuem a Javé características também atribuídas a Marduque, por
exemplo: “Um deus é maior do que todos os outros deuses, de fama mais justa,
cuja palavra de comando, é a palavra dos céus, oh Marduk, o maior de todos os
grandes deuses, honra e fama, vontade de Anu, grande no comando, palavra eterna

10 “Ele criou o homem (e a mulher) seres vivos, para trabalhar para sempre, e liberar os deuses de outras cargas”
(Tábua VI)
11 von RAD, G. op.cit., p. 231s.
12 Veja-se a discussão sobre a relação entre criação e salvação por HAAG, E. “Deus criador e Deus salvador na
profecia de Dêutero-Isaías”. In: GERSTEBNERGER, E. (org.) Deus no Antigo Testamento. São Paulo: ASTE,
1981, p. 259-290.

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e inalterada!” (Tábua IV). Em Isaías 40-55, a antiga e tradicional noção do deus
supremo que rege os demais deuses no conselho celestial é modificada pelas
afirmações de que somente Javé é Deus (45,5.6.18b.22; 46,9), e que ele é anterior à criação, o “primeiro e último” (43,10b; 41,4; 44,6; 48,12). Desta forma, a
redescrição “monoteísta” deve ser entendida como a resposta teológica dos judaítas à dominação imperial babilônica, legitimada pela soberania universal de Marduque sobre os deuses e, conseqüentemente, sobre toda a terra. Que Javé é o único e supremo Deus também se postula através da afirmação de que ele controla os astros celestes (40,26; 45,12), por ele mesmo criados, em clara polêmica contra a divinização dos astros celestes na teologia babilônica (e.g., Marduque é o Sol, Sin é a Lua), bem como contra a astrologia desenvolvida pelos “magos caldeus” – só de Javé é que se deve buscar conselho e direção para a vida. Por fim, deve-se notar também a relação polêmica da afirmação da unção
de Ciro (44,28-45,8)13 por Javé, que o subordinou na salvação de Israel e no
governo das nações, com a afirmação, no Cilindro de Ciro, de que foi pela mão de Marduque que o persa conquistou (isto é, “salvou”) a Babilônia: “Ele perscrutou e examinou todas as nações, buscando um rei justo que quisesse levá-lo (na procissão anual). Então, ele pronunciou o nome de Ciro, rei de Anshan” (cf. Pritchard, James, Ancient Near Eastern Texts, p. 315). Em um cilindro, ligado a Nabonido, Marduque apareceu em sonho ao rei babilônio, e o advertiu acerca da vitória de Ciro sobre os medas: “O meda, a quem mencionaste, ele, seu povo e os reis que marcham com ele, deixarão de existir. (E, de fato) quando o terceiro ano
chegou, ele (Marduque) levantou Ciro, rei de Anshan, seu jovem servo, que

13 “Javé virá proximamente; mas ele não se revelará somente a Israel, virá desta vez para uma teofania universal;
sua glória (kâbôd) será revelada a todas as nações. ... Depois que Ciro movimentou a história universal, muitas
coisas começam a vacilar e o fim está próximo. 'Minha salvação está próxima, meu socorro já vem (Is 51,6;
46,13). O braço de Javé está desnudado diante das nações (Is 52,10); coisas maravilhosas se produzirão. ... é Javé
quem o [Ciro] 'suscitou' (Is 24,2.25) [sic], e se dirige a ele usando o estilo de corte do Antigo Oriente, dizendo
que o tomou pela mão, que o acompanha como um amigo, que o chamou por seu nome e lhe deu afeição [nota
335, p. 447: Is 45,1-3; 48,14. Já se notou freqüentemente o paralelismo chocante que esta passagem e as
expressões estilizadas em linguagem da corte que descrevem a relação do Deus Marduque com Ciro no
documento chamado 'cilindro de Ciro', AOT, p. 368ss; ANET, p. 315s.].” (von RAD, 1974:234)

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dispersou os exércitos do meda com o seu pequeno exército, e que capturou
Astíages, rei dos medas, e o levou como cativo”.14 Isto nos permite contrastar a
profecia com a “adivinhação”, conforme presente na polêmica teológica de Is 40-
55, e.g. em Is 41,21ss (cf. 42,8-9; 48,2-6) que contrasta a capacidade preditiva de
Javé com a incapacidade dos ídolos (outros “deuses) em anunciar, de antemão a
seus povos, o que acontecerá no seu futuro. Temática, esta, que tem a ver com a
soberania universal de Javé, em contraste com a soberania de Marduque.15
2. A redescrição de Javé vis-a-vis a tradição teológica judaico-israelita
Já von Rad destacava a relação da teologia de Is 40-55 com a tradição
profética anterior: “constatamos que o segundo-Isaías retomou as três tradições
sobre a eleição que estão na base de toda profecia (as tradições relativas ao êxodo, a Davi e a Sião), e lhes imprimiu sua marca em poemas de grande valor” (Von RAD, 1974, p. 230). Não se aceita mais a afirmação de que as tradições do êxodo, Davi e Sião sejam “tradições sobre a eleição”, nem que “estão na base de toda profecia”. Von Rad ainda menciona o uso da tradição sobre a criação (p. 231) pelo segundo-Isaías, mas destaca que essa tradição não estava presente na profecia a ele anterior. Também aqui se deve modificar o foco, não se reduzindo a relação do segundo Isaías apenas com as tradições “proféticas”. Claus Westermann, em seu comentário a Isaías 40-66, procura traçar a relação do dêutero Isaías com as tradições a partir de três categorias distintas: as tradições históricas (êxodo, Sião e Davi), as tradições proféticas (o juízo e a denúncia contra o culto sacrificial), e as

14 Citado em BLENKINSOPP, Joseph. Isaiah 40-55: a new translation with introduction and commentary. New
York: Doubleday, 2002, p. 207).
15 “O segundo-Isaías coloca efetivamente, com toda agudeza, a questão de saber quem dirige a história universal?
A resposta que dá é surpreendente: o Senhor da história é aquele que pode predizer o futuro. Ora, os deuses dos
pagãos não são capazes disso, são pois 'inexistentes'. No conflito entre Javé e os falsos deuses, a prova pela
predição é que constitui a differentia specifica. No mais, sobre o plano da história, onde se resolve este conflito,
Javé está à mercê de seu povo, dado que Israel é sua testemunha, por mais miserável que seja (Is 42,19 ... 43,9-
10).” (von RAD, 1974: 233)

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tradições achadas no saltério (forma dos oráculos de salvação, o louvor
declarativo, a realeza de Javé, os salmos de lamento) – que é uma organização
mais adequada do que a de von Rad, mas ainda incapaz de categorizar
corretamente o pensamento judaico-israelita, na medida em que desconsidera
(como o fizera von Rad anteriormente) os distintos lugares sociais dessas diversas tradições.16 Outros autores e autoras, ainda, têm destacado as inter-relações do pensamento de Isaías 40-55 com a pregação do Isaías do VIII século (relação já enfatizada pela editoração do livro) e com o pensamento deuteronomista.
Assim como na discussão sobre as relações intertextuais com textos
mesopotâmicos, apenas comentarei brevemente sobre a apropriação de duas
tradições jerosolimitanas em Isaías 40-55 com vistas à posterior descrição da fé em Javé no segundo Isaías.

(1) Reino de Javé vs. reino de Davi
Um dos temas diretamente vinculados à afirmação da realeza de Javé, nas
antigas tradições de Judá, é a relação entre a realeza divina e a dinastia davídica.
Textos como II Samuel 7,1ss e Salmos 2 e 72; a ênfase na figura de Davi como
“servo de Javé”; a esperança messiânica real (cf. Is 6-9); e as afirmações sobre a
filiação divina do rei (Sl 2), são exemplos dessa relação – que não tem nada de
inusitado nas teologias políticas do Antigo Oriente, pois era moeda corrente nas
mesmas – os reis são, na terra, representantes (ou filhos) do deus supremo, ou dos deuses. O rei terreno é quem governa na terra manifestando o governo divino – ou seja, é ele quem executa na terra a justiça divina (e.g. Salmo 72) – e é, por sua vez, protegido e legitimado pelo governo divino. A importância da dinastia davídica extrapola a teologia “oficial” da corte, e se manifesta também na forma de um tipo de messianismo davidita, cujo lugar social é a crítica profética e popular à dinastia davídica regente (e.g. Is 6-9).17

16 WESTERMANN, Claus. Isaiah 40-66: a commentary. Philadelphia: Westminster Press, 1986, p.21-27.
17 Ver, também, SCHWANTES, M. “Elementos de um projeto econômico e político do messianismo de Judá.

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Em Isaías 40-55 porém, não é através de Davi e sua dinastia que Javé
realizará a justiça. Pelo menos três contrastes podem ser percebidos: (a) Javé
realizará sua justiça através de seu servo que, no Dêutero-Isaías é, ou um profeta
(42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 53,13-53,12), ou o próprio grupo de exilados identificadocomo Israel/Jacó (41,8.9; 42,19; 43,10; 44,1.2; 44,21.23; 45,4); (b) o Ungido de Javé e seu pastor libertador dos exilados é Ciro (44,24-45,8), um rei estrangeiro, e não Davi; e (c) as promessas a Davi (referência a II Sm 7,8-17) são transferidas a todo o povo de Javé (Is 55,3-5)18, o que corresponde também à ênfase sobre Jerusalém/Sião como o espaço da justiça divina ao invés da dinastia e do palácio real (e.g. Is 54,1-17).
Ao recusar-se a vincular o reinado de Javé à dinastia davídica, o segundo
Isaías o vincula às tradições do êxodo egípcio e das famílias abrâmicas préisraelitas (cf. 40,9-11; 52,7-12; 51,1-3 e a preferência pelo par Israel/Jacó para
significar o povo de Deus). Javé não é descrito, então, como o deus do estado
monárquico, mas redescrito como o Deus do povo, das famílias que O ouvem e
servem. Desta forma, a pregação dêutero-isaiânica retoma uma compreensão préestatal ou anti-estatal do reinado de Javé – reinado que não precisa, na terra, de um rei e seu aparato estatal-militar para se concretizar.19
(2) Jerusalém/Sião da justiça vs. Jerusalém/Sião do “sagrado”
De forma semelhante, o segundo Isaías redescreve a relação de Javé com
Sião. Nas tradições “sionistas”, Javé garante a inviolabilidade de Jerusalém/Sião,
que é o centro do cosmos e a morada eterna de Javé (e.g. Salmos 46, 48, 76 e 87).
Esta compreensão está estreitamente ligada à legitimação da dinastia davídica
brevemente comentada acima. Na oração de dedicação do Templo, atribuída a
Salomão, é afirmada a perenidade do Templo enquanto morada de Javé (I Rs 8,13),

Gênesis 49, 8-12: uma antiga voz judaíta interpretada no contexto da História da Ascensão de Davi ao Poder
(1Samuel 16 até 2Samuel 5)”. Revista de Interpretação Bíblica. Petrópolis: Vozes, 2004, vol. 48/1, p. 25-33.
18 Entre outros comentaristas, BLENKINSOPP destaca: “O autor isaiânico, portanto, por assim dizer, democratiza
a promessa a Davi, transferindo-a ao povo de Israel como um todo.” (op. cit., p. 370)
19 Ver, por exemplo, PIXLEY, Jorge. O Reino de Deus. São Paulo: Paulinas, 1986.

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crença reforçada na crítica ao profeta Jeremias que anunciava o juízo contra a casa e a cidade (Jr 7,4). A queda da cidade e a destruição do Templo representaram um desastre terrível para a fé judaíta:
Caiu, assim, um baluarte. Não casualidade, mas indício. Sinal da
presença de Deus. No entanto, um Deus que perdia a habitação que
escolhera para si, perdia também a força. Que significado tem esse
fato para a possibilidade de se falar desse Deus? Cito aqui trechos
de uma oração: 'que por tua ordem seja edificada a cidade divina ...
o templo seja acabado! Que por tua palavra, pois ela não muda,
possa ... completar-se a obra de minhas mãos! Que tudo o que criou
dure e subsista visivelmente até os tempos mais remotos'.20
Enquanto “a teologia de Sião” gira ao redor do eixo da sacralidade e da
liturgia sacrificial no Templo, a casa oficial da fé em Javé no estado monárquico,
no Segundo Isaías, a ênfase não passa por esse mesmo caminho da sacralidade,
mas pelo caminho da aplicação da justiça. Somente em dois versos encontramos a expressão “cidade santa” (48,2 e 52,1). No primeiro, a “cidade santa” é a fonte de legitimação da religião infiel dos seguidores de Javé responsabilizados pela
destruição da cidade e do reino de Judá. No segundo, a fala é exortativa e salvífica, convocando Jerusalém a se revestir das roupas gloriosas que Javé lhe dará em sua salvação – destaque-se que a cidade é descrita como “cativa”, implicitamente, como desnuda, ou seja, como pecadora e profanada pela invasão militar estrangeira21. Na sua redescrição de Jerusalém, as fontes textuais primárias são a crítica isaiânica (e.g. Is 1,21ss) e a de Jeremias e Sofonias (e.g. Jr 7,1ss; Sf 1,4-6; 3,1ss).
Na exaltada descrição da restauração de Jerusalém/Sião, no capítulo 54,
não se pode perder de vista que a cidade-esposa de Javé é retratada como em
ruínas, como tendo sido rejeitada pelo seu esposo por causa de seus pecados (note-

20 PERLITT, L. “Acusação e absolvição de Deus”. In: GERSTENBERGER, E. (ed.) Deus no Antigo Testamento.
São Paulo: ASTE, 1981, p. 295.
21 Não se deve perder de vista o caráter apologético destas afirmações. Um deus que não pode manter em pé a sua
cidade e sua casa, não pode ser senão um deus fraco e derrotado.

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se o elo entre a afirmação do repúdio da esposa com a menção a Noé, 54,6-8.9-
10)22. Especialmente digna de nota é a afirmação de que a nova Jerusalém terá
como característica a justiça, ou seja, a não-opressão (v. 14, que ecoa a crítica
profética contra Jerusalém), pois os seus habitantes serão “discípulos” de Javé, ou seja, não mais serão cegos e surdos à Torá de Javé, deficiência ética e espiritual que estava na base do juízo de Javé contra a sua cidade-esposa. Novamente, aqui, o elo entre Javé e o estado é rompido, e restabelecido o elo entre Javé e o seu povo.
A ênfase sobre Jerusalém/Sião (já indicada em 40,9-11 e espalhada pelo livro
dêutero-isaiânico) aponta para o caráter urbano do grupo que escreve o livro.
Como esposa de Javé, Jerusalém será metrópole (literalmente “cidade-mãe) de
Judá, ela será o lugar de onde Javé difundirá23 a sua justiça sobre a terra de seu
povo e sobre todas as nações.

3. Javé: deus único e incomparável: a redescrição dêutero-isaiânica
As seguintes frases afirmam que Javé é o único deus: “antes de mim
nenhum Deus foi formado e depois de mim não haverá nenhum” (43,10); “Eu, eu
sou Javé, e fora de mim não há nenhum salvador” (43,11); “Eu sou o primeiro e o último, fora de mim não há Deus” (44,6; cf. 41,4); “Eu sou Javé, e não há nenhum outro, fora de mim não há Deus” (45,5; cf. “fora de mim não há ninguém” 45,6); e “Quem proclamou isto desde os tempos antigos? Quem o anunciou desde há muito tempo? Não fui eu, Javé? Não há outro Deus fora de mim, Deus justo e salvador não existe, a não ser eu” (45,21) – frase colocada na boca das nações: “Só contigo Deus está! Fora dele não há nenhum Deus” (45,14). A expressão “fora (além) de mim” retoma o primeiro mandamento (Êx 20,1-6; Dt 5,6-9) e amplia seu

22 Note-se a conexão intertextual com Lm 1,1: “Como jaz solitária a cidade outrora populosa! Tornou-se como uma
viúva a que foi grande entre as nações.”
23 Lembremo-nos de que um dos verbos favoritos do Segundo Isaías, para se referir ao agir salvífico de Javé, é
“fazer sair”.

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significado ao excluir os “outros deuses”. A negação de divindade aos “outros
deuses” desempenha um papel crucial na reconstrução da identidade dos judaítas
exilados, através de sua forte tonalidade polêmica contra os deuses conquistadores dos babilônios (e dos assírios antes deles, e dos egípcios antes ainda)24. Não se deve interpretar estas afirmações a partir da categoria ocidental filosófica do monoteísmo.
Javé é o único Deus porque somente ele criou o mundo e salva o seu povo
Israel – é o agir de Deus que o caracteriza enquanto divino, não os atributos de sua natureza (como no teísmo filosófico). Como destacou Haroldo Reimer, a crença “monoteísta” em Javé precisa ser entendida no âmbito do processo histórico de formação e transformação da fé em Javé, especialmente mediante o mecanismo da sincretização: “todo esse processo deve ser entendido de acordo com as coordenadas de um sincretismo religioso, em que atribuições e funções de
determinadas divindades são transferidas a outra no mesmo compasso em que, na
base social, isto é, junto aos sujeitos religiosos, há um processo de amalgamação e inculturação das expressões religiosas.”25
A força principal da afirmação da unicidade de Javé recai sobre a crítica à
ideologia dos babilônios. Somente Javé é o deus criador, o vencedor e salvador, o
deus justo que anuncia o que fará antes de fazê-lo, o senhor da história. Para o
segundo Isaías, a descrição monolátrica de Javé não era mais suficiente para
manter a fé e a identidade do povo de Deus. Era necessário ir além, avançar para

24 “A prática de vincular uma auto-identificação da divindade com uma rejeição de reivindicações rivais - “não há
outro que possa salvar, além de mim ... ninguém pode livrar de minha mão” (ver também 44,6.8; 45,6.21) – se
assemelha à formulação atribuída à Babilônia personificada e, portanto, com toda a probabilidade, falada em
nome do deus imperial da cidade, Marduque: “Eu sou, e não há nenhum outro” (47,8.10). Entendo isto como um
dos indícios da familiaridade do autor com a ideologia religiosa do império e com o culto imperial, cujas
principais expressões são encontradas no épico Enuma Elish e no festival akitu de Ano Novo, durante o qual ele
era recitado. Diferentemente de Marduque, filho de Ea, que foi precedido pelos deuses criados em pares (Lahmu
e Lahamu; Ashar e Kishar), e sucedido por outros, Javé não tem uma genealogia e não é parte de uma teogonia
(v. 10b). Esta é uma das várias indicações, em Isaías 40-55, de um tipo de imagem especular do culto de
Marduque, por meio da qual o autor visava contrapor-se à ideologia do poder articulada nessas liturgias.”
BLENKINSOPP, Joseph. Isaiah 40-55: a new translation with introduction and commentary. New York:
Doubleday, 2002, p. 225.
25 REIMER, H. “Sobre os inícios do monoteísmo no Antigo Israel”. Fragmentos de Cultura. Goiânia: UCG, 2003,
vol. 13/5, p. 985.

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uma afirmação mais ousada e polêmica: somente Javé é Deus! Um passo
gigantesco dado por derrotados, sem nenhuma forma de verificação histórica – sem cidade, sem templo, sem palácio. Somente a fé e a esperança estão na base da afirmação monojavista. Em um ambiente cultural em que cada cidade possuía o seu deus, a afirmação de que há somente um deus possui implicações políticas e religiosas de largo alcance.
Crer em um só Deus demanda que todas as esperanças, dúvidas e certezas
sejam colocadas somente nele, e impede que se apele a outros deuses quando o
deus não atende as necessidades do crente. Afirmar que somente Javé é deus
dirige-se primariamente aos judaítas que dividiam a sua lealdade entre vários
deuses e deusas, de acordo com a conveniência. Crer em apenas um deus exige um tipo mais profundo de compromisso e lealdade. Ainda sob o ponto de vista da
religião, a afirmação do deus único impede todo e qualquer tipo de dualismo. A
afirmação ousada de que Javé cria a luz e as trevas, o bem e o mal (45,7), no
discurso sobre Ciro, polemiza com o dualismo explícito da religião persa,
ampliando dessa forma o alcance do monismo tradicional em Israel e Judá (cf. Am 3,6; 4,13). Isto acarreta, porém, uma incerteza para a crença. Um deus único é, também, um deus imprevisível, na medida em que não pode ser controlado pelos seus adoradores e adoradoras. Imprevisível, é também soberano e deve ser
atentamente ouvido e obedecido (a falta de ouvir e obedecer a Torá de Javé é a
principal descrição dêutero-isaiânica do pecado do povo de Javé). Acarreta esta
crença, ainda, a impossibilidade de se atribuir características fechadas de gênero à divindade. Javé não pode ser mais descrito como sendo exclusivamente
“masculino”! “O Deus único significa, entre outras coisas, que não é mais possível definir o gênero da divindade em termos exclusivos, ou fazer qualquer
diferenciação em termos de especificidade de gênero. Dêutero-Isaías pode se
aventurar a comparar o que Javé faz, com o grito do guerreiro na batalha (42,13) e

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com o grito da mulher em trabalho de parto (42,14).”26
Do ponto de vista político, a afirmação da unicidade de Javé representa o
fim de toda e qualquer noção estatal e/ou imperialista da divindade. O deus único
não está vinculado a nenhum país, a nenhum palácio, a nenhum templo, a nenhum lugar. Está em todos os cantos, de forma livre e soberana. Como criador e salvador de toda a terra e de todas as nações, Javé governa com justiça, libertadoramente, estabelecendo como padrão para as relações político-econômicas a fidelidade à justiça do próprio Deus. É à luz desta afirmação que a ação redentora de Javé em favor de Israel/Jacó e Jerusalém/Sião deve ser entendida, sob risco dela ser reduzida, novamente, a uma eleição arbitrária e excludente. Como criador dos céus e da terra, Javé também cria (salva) seu povo, mas não de forma excludente, pois seu povo se tornará testemunha (43,12; 44,8; 48,20-22) da salvação de Javé para todas as nações (cf. 49,10ss; 51,4-8; 52,1-6.7-12; além dos poemas do servo de Javé). Embora Jerusalém seja o lugar privilegiado da difusão da Torá justa de Javé, não é um lugar imperial. Embora a salvação das nações esteja vinculada à de Israel, não é para fazer de Israel um império. Se Javé não é como Marduque, também sua cidade não poderá ser como a Babilônia! Javé não é um deus nacional, mas um deus pessoal27. Deus de famílias e não de países. Deus de seguidores e seguidoras, e não de instituições. Não é à toa que o nome preferido do segundo Isaías para o povo de Deus é Israel/Jacó, o pai de família que viveu vinte anos no “exílio” e conseguiu, com sua família, voltar à terra de seu pai e mãe. Para os judaítas nas colônias em terras babilônicas, a memória das vicissitudes das famílias fundadoras, acrescida da fé em Javé como o único deus, desempenharia papel crucial na reconstrução de sua identidade ameaçada.

26 BALTZER, K. Deutero-Isaiah: a commentary on Isaiah 40-55. Minneapolis: Fortress Press, 1999, p. 36.
27 Não é possível, aqui, discutir as questões sociológicas e teológicas mais amplas relativas à afirmação de que Javé
é um deus “pessoal”, “familiar”. Veja-se a discussão, por exemplo, em ALBERTZ, R. História de la religión de
Israel en tiempos del Antiguo Testamento. Madri: Trotta, 1999, 2 vols. e GERSTENBERGER, E. Theologies in
the Old Testament. Minneapolis: Fortress, 2002.

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Como deus único, Javé também é um deus incomparável (40,12-31; cf.
46,5; 55,6-11). É incomparável em sua liberdade étnica, pois pode chamar Ciro,
um estrangeiro que não o conhece, para ser o sujeito histórico da libertação de seu povo (41,1-5.25; 44,28-45,7; 45,12-13; 46,11; 48,14s), e pode aceitar estrangeiros em seu povo (44,5). É incomparável em sua liberdade política, pois pode democratizar a aliança com o rei Davi (Is 55,1-5), sendo o Deus que faz aliança com as pessoas necessitadas, e não com as poderosas; e é o Deus que pune o seu próprio “país” (40,1-2; 42,18-25; 50,1-3), e pune também Babilônia porque não é justa (47,1ss). É incomparável porque a sua glória não está na pompa litúrgica ou arquitetônica, mas na libertação das pessoas injustiçadas (40,3-5; 43,16-21; 45,25; 46,13; 51,9-11; 55,12-13). É incomparável porque desqualifica a palavra dos sábios e a magia dos magos caldeus (44,25; 47,12-15), fazendo da sua própria palavra a força libertadora na história (55,6ss). É incomparável porque, para salvar o seu povo, não só usa um estrangeiro, mas também um servo que liberta não pela força militar, mas pela força do testemunho, até ao clímax do martírio (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12). É incomparável porque para criar o mundo, não precisou de conselheiros nem ajudantes, e nem se envolveu em um revolta caótica, mas vê o caos desdivinizado na opressão entre povos, e faz do novo êxodo do seu povo a triunfante passagem pelas águas caóticas (45,14-19; 51,9-11).
Diante dos imensos desafios da dominação babilônica, nenhuma resposta
tímida poderia servir de base para a reconstrução da identidade do povo de Javé.
Na pregação e nos cânticos do segundo-Isaías, encontramos a mais ousada
redescrição da fé em Javé no Antigo Testamento – que reverbera até hoje entre as
pessoas que seguem a Javé e também ao Pai de Jesus Cristo. Só há um Deus e ele é incomparável. Que Deus pode se comparar àquele que, para salvar a sua criação, morre reconciliadoramente? À mesma ousadia o segundo-Isaías nos convida hoje em nossas redescrições da fé.

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Apêndice

Tábua IV do Enuma Elish
(http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html)
Foi feito um trono para Marduk, e ele ali se sentou, face a face com seus ancestrais para receber o
governo.
- Um deus é maior do que todos os outros deuses, de fama mais justa, cuja palavra de comando, é a
palavra dos céus, oh Marduk, o maior de todos os grandes deuses, honra e fama, vontade de Anu, grande
no comando, palavra eterna e inalterada!
Onde houver ação, Marduk é o primeiro a agir, Onde houver governo, Marduk é o primeiro a governar,
para dar glória a uns, para humilhar outros, a prerrogativa do deus, Verdade absoluta, vontade sem limite,
que deus ousará questioná-lo? Nos seus locais mais lindos destes mesmos deuses, um lugar é sempre
guardado para Marduk, nosso vingador.
Nós te chamamos aqui para receber o cetro, para fazer de ti rei de todo o universo. Quando te sentares no
Sínodo, serás o árbitro; na batalha, tuas armas esmagarão o inimigo.
- Deus, salva a vida de qualquer deus que se voltar para ti; mas para aqueles deuses que apreenderem o
mal, que a vida destes deuses lhes seja tirada.'
Os deuses ancestrais conjuraram então um tipo de aparição na frente deles, fazendo com que este ser
aparecesse frente a Marduk, para dizer ao jovem deus, o primogênito:
- Deus, tua palavra entre os deuses arbitra, destrói e cria; fale então e esta aparição irá desaparecer. Fale
novamente, e a aparição irá reaparecer.
Ele falou e a aparição desapareceu. Novamente ele falou, e a aparição reapareceu. Quando os deuses
deram-se satisfeitos por Marduk ter provado a força de sua palavra, os deuses ancestrais abençoaram-no e
bradaram:
- MARDUK É REI!
Os deuses ancestrais vestiram Marduk com as vestimentas reais, o cetro e o trono a ele foram dados, bem
como armas de guerra sem igual como um escudo contra adversários.
Parta agora. Tire a vida de Tiamat, e que os ventos carreguem seu sangue até os limites mais secretos do
mundo!
Os deuses antigos mostraram a Bel o que ele teria de ser e o que deveria fazer, sempre através da
conquista, sempre através de [grandes] vitórias;
Então Marduk fez uma reverência e para marcar aquela que seria sua arma, sua e somente sua, ele
colocou uma flecha contra o arco, na mão direita e segurou a clava e levantou-a para o alto, arco e flecha
pendurados ao ombro, sendo que relâmpagos se projetavam à sua frente, ele mesmo tornando-se numa
figura incandescente.
Ele fez uma rede, uma isca para Tiamat; os ventos, em suas posições nas quatro direções, seguraram tal
rede, o vento sul, o vento norte, o vento leste e o vento oeste, de forma que parte alguma de Tiamat
pudesse escapar.
Com a rede, o presente de Anu, ao lado, ele se ergueu.
IMHULLU
O vento atroz, a tempestade, o redemoinho, o furacão, o vento dos quatro, o vento dos sete, e o túmido, o
pior de todos.
Todos os sete ventos foram criados e liberados para assaltar as entranhas de Tiamat. Os ventos se
postaram atrás de Marduk. Então o tornado
ABUBA
Seu último grande aliado, o sinal para para o assalto, ele levantou.
Marduk montou na tempestade, sua carruagem terrível ...
Ele colocou à sua direita o Batedor, o melhor em fazer confusões; à sua esquerda esta a Fúria da Batalha,
que aniquila o mais bravo; adornou sua armadura com terror, uma auréola de espanto; com uma palavra
mágica murmurada entre dentes, uma planta que cura foi pressionada na palma de sua mão. Assim
armado, ele partiu.
Ele seguiu na direção do som crescente da ira de Tiamat, com todos os deuses a seu lado, e os pais de
todos os deuses. Desta forma, Marduk se aproximou de Tiamat.
Ele a observou examinar as profundezas, ele testou o plano de Kingu, o consorte de Tiamat, mas assim
que Kingu viu o jovem deus, ele começou a tremer, começou a sentir medo, e ao ver os deuses que
enchiam as fileiras atrás de Marduk, quando Kingu viu o bravo jovem deus, seus olhos repentinamente se
anuviaram.
Mas Tiamat, sem virar seu pescoço, cuspiu em desafio:
Arrogante, pensas que és o maioral? Os deuses estão saindo agora de seus esconderijos para habitar o teu.
Então o jovem deus levantou um furacão, a grande arma que ele lançou com palavras e terrível fúria:
- Por que estás te insurgindo, teu orgulho criando um abismo, teu coração escolhendo facções, para que
teus filhos rejeitem seus pais? Mãe de todos nós, por que tens de ser a mãe da guerra?
Fizeste de Kingu, aquele inepto, teu esposo! Deste a ele a posição de Anu, não que ele merecesse, porém.
Tens abusado dos deuses, meus ancestrais, em amarga malevolência ameaças Anshar, o rei de todos os
deuses. Tens incentivado as forças para batalha, preparado as armas de guerra. Levante-se portanto
sozinha, e lutaremos contra ti, e eu e eu somente contigo irei lutar.
Quando Tiamat ouviu Marduk, com seus nervos à flor da pele, ela ficou enraivecida e gritou para o alto,
suas pernas estremeceram, ela começou a fazer encantos e maldições, enquanto os deuses da guerra
afiavam as suas armas.
Então eles encontraram Marduk, o mais arguto dos deuses, e Tiamat engalfinhou-se com ele num
combate corpo a corpo.
Marduk lançou sua rede para prender Tiamat, e o implacável vento Imhullu veio por trás e bateu na face
de Tiamat. Quando ela abriu a boca para engolir Marduk, o jovem deus empurrou Inhullu para dentro
dela, de modo que a boca não se fechasse e que o vento rugisse na barriga da mãe original de todos os
deuses, para que sua carcaça explodisse, entumescida. Tiamat escancarou sua boca, e então Marduk
disparou a flecha que lhe cortou as entranhas, que atingiu seu estômago e útero da criação.
Agora que Marduk havia conquistado Tiamat, ele terminou com a vida dela. Ele a atirou ao chão, subindo
em sua carcaça. A líder da insurreição estava morta, seu corpo despedaçado, seu bando disperso.
Aqueles deuses que haviam marchado ao lado dela agora estavam cheios de terror. Para salvar suas
próprias vidas, se pudessem, voltaram suas costas ao perigo. Mas então eles foram rodeados num círculo,
do qual não podiam escapar.
Marduk esmagou as armas dos deuses rebeldes, e jogou-as com eles na sua rede. Lá, os deuses rebeldes
choraram e se esconderam pelos cantos, sofrendo a ira do deus.
Aqueles que resistiram, foram colocados em grilhões, que continham onze monstros, estes monstros os
filhos malditos de Tiamat, com todos os seus armamentos assassinos. O bando demoníaco da grande
deusa que havia marchado à frente dela, Marduk levou ao solo, de joelhos.
Mas Kingu, o usurpador, o chefe de todos eles, Marduk prendeu e o matou, tomando as Tábuas do
Destino, usurpadas sem direito por Kingu, e selando-as com seu selo, Marduk colocou-as em seu peito.
Quando tudo isto tinha sido feito, os adversários derrotados, o inimigo orgulhoso humilhado, quando o
triunfo de Anshar havia sido alcançado sobre o inimigo, e a vontade de Nudimmud satisfeita, então o
bravo Marduk apertou as cordas dos prisioneiros.
Ele voltou para onde Tiamat jazia acorrentada, ele abriu as pernas da deusa e espatifou seu crânio (pois a
clava não tinha misericórdia), ele cortou as artérias e o sangue dela jorrou na direção do Vento Norte para
os confins desconhecidos do Mundo Físico.
Quando os deuses viram tudo isto, eles riram alto e mandaram presentes a Marduk. Eles mandaram ao
jovem herói tributos agradecidos.
O jovem deus descansou. Ele olhou para o corpo amplo de Tiamat, ponderando sobre como usá-lo, o que
criar da carcaça morta. Ele abriu o corpo de Tiamat em dois, com a primeira metade, a superior, ele
construiu o arco dos céus, ele empurrou para baixo uma barra e fez uma sentinela para as águas, de forma
que estas jamais pudessem escapar.
Ele cruzou os céus para contemplar a infinita distância; ele se postou sobre apsu, aquele apsu construído
por Nudimmud sobre o antigo abismo que ele agora examinava, medindo-o e demarcando-o.
Ele estendeu a imensidão do firmamento, ele fez Esharra, o Grande Palácio, à sua imagem terrena, e Anu,
Enlil e Ea tiveram suas estações certas.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Um povo à altura de seu Deus (Isaías 40-55)

por
Júlio Paulo Tavares Zabatiero

Introdução

Na teologia de Is 40-55, a principal novidade é a redescrição da fé em
Javé. Redescrição que tem seu elemento mais peculiar na afirmação de que
somente Javé é deus, que serve de base para a releitura das tradições israelitas
do Deus libertador, justo, santo, fiel à aliança com o seu povo eleito. Ao focarmos o estudo na identidade do povo de Javé em Is 40-55, veremos que essa
mudança na concepção da divindade é a principal fonte para as propostas
redescrição da identidade do povo judaíta, redescrição que abre novas
possibilidades para a identidade do povo de Deus.

1. Nomenclatura para o povo de Deus em Isaías 40-55

1.1. Nomes do povo de Deus
(1) Israel e Jacó (ocorre em 42 versos, algumas vezes no título de Deus:
40,27; 41,8.14.16.17.20.21; 42,24; 43,1.3.14.15.22.28; 44,1.2.5.6.21.23;
45,3.4.11.15.17.19.25; 46,3; 47,4; 48,1.2.12.17.20; 49,3.5.6.7.26; 52,12; 54,5;
55,5)
(2) Judá (ocorre em 3 versos: 40,9; 44,26; 48,1)
1.2. Jerusalém e Sião representando o povo de Deus
(1) Jerusalém (ocorre em 9 versos: 40,2.9; 41,27; 44,26.28; 51,17;
52,1.2.9; é o tema central do capítulo 54, sem ser nomeada; e é identificada duas
vezes por meio de expressões: 45,13 “minha [de Javé] cidade” e 48,2 “cidade
santa”)
(2) Sião (ocorre em 21 versos: 40,9; 41,27; 46,13; 49,14; 51,1.3.11.16;
52,1.2.7.8)
1.3. Fórmulas tradicionais e vínculos com o nome de Deus
(1) Meu povo (ocorre em 9 versos: 40,1; 43,20; 47,6; 51,4.16; 52,4.5.6;
53,8)
(2) Javé, teu Deus (ocorre em 3 versos: 43,3; 48,17; 55,5)
(3) Santo de Israel (ocorre em 11 versos: 41,14.16.20; 43,3.14; 45,11;
47,4; 48,17; 49,7; 54,5; 55,5)
(3) Deus de Israel (ocorre em 6 versos: 41,17; 45,3.15; 48,1.2; 52,12)
(4) Rei de Israel (44,6); Rei de Jacó (41,21)

2. Características identitárias do povo de Deus em Isaías 40-55

2.1. Povo pecador
A condição de deportados, ex-moradores de uma cidade destruída e de
um reino subjugado, provocou intensa reflexão entre os judaítas. Para boa parte
dos jerosolimitanos, graças à permanência da dinastia davídica no poder real, a
crença na inviolabilidade da cidade santa e da perenidade da dinastia davídica
era marca definidora de sua identidade. Crença esta que, com o exílio, se provou
incorreta e passou a demandar readequação. Em Is 40-55, as tradições da
profecia pré-exílica (especialmente a do VIII século a.C., que denunciavam o
pecado dos dirigentes do povo de Deus e o castigo divino na forma de conquista
do reino pelos assírios e deportação dos pecadores) foram reconfiguradas de
modo que a condição de pecador se tornou primária na construção da identidade
da parcela do povo de Deus que experimentou o exílio. Neste sentido, a teologia
de Is 40-55 se constrói como o principal discurso concorrente de outros
discursos similares: (a) o jeremiânico-deuteronomista, que destaca a
pecaminosidade da casa real e do povo de Judá, mas na ótica da quebra da
aliança com Javé, primariamente na forma de idolatria e, em segundo lugar,
como desobediência à Torá de Javé; e (b) o ezequielano-sacerdotal, que atribui a
desgraça ao pecado do povo de Deus, concebido primariamente como impureza
e ignorância da Torá divina medida pelo sacerdócio.
A abertura do livrinho do novo êxodo destaca o cumprimento da pena do
“meu povo”, pena justa para os pecados outrora cometidos (40,1-2). A
identificação do “meu povo” com Jerusalém nos versos iniciais, e a afirmação
do papel de “evangelista” para Jerusalém/Sião (em 9-11), deve ser entendida
como uma reafirmação da condição pecaminosa dos grupos dirigentes do Judá
pré-exílico, mas também como uma afirmação de sua importância estratégica na
restauração do reino por Javé. Desde o início do livro ressoa a polêmica contra a
crença babilônica (e vétero-oriental em geral) de que os deuses dos povos
conquistados eram derrotados pelos deuses da Babilônia. A destruição do reino
de Judá e o exílio de parte de sua população não foram causados pelo poder
superior de Marduque, mas pela mão do próprio Javé, que puniu seu povo por
causa de seus pecados. O castigo, entretanto, não é a palavra final de Javé para
seu povo, e esse é o tema que perpassa a pregação deutero-isaiânica: o mesmo
Javé que puniu seu povo, por causa de seus pecados, é o poderoso deus que irá
libertá-lo e restaurá-lo (40,3-11).
São três os termos que descrevem o pecado de Jerusalém (meu povo) no
verso 2: Ha'b'c. (serviço militar), Hn"wO[] (perversidade, transgressão) e h'yt,aJox-; lk'B .
(todos os teus pecados). Os dois últimos são relativamente freqüentes no Antigo
Testamento, enquanto o segundo só é usado aqui nesse sentido de
pecado/castigo, aproveitando a ambigüidade do termo, que indica serviço militar
obrigatório e, por extensão, servidão. Transgressão e pecado são termos mais
genéricos, usados tanto em contextos cúlticos, quanto legais, quanto políticos.
Miquéias 3:8 (pecado) e Amós 3,2 (transgressão) são textos emblemáticos,
destacando o caráter totalizante dos erros dos dirigentes de Judá e Israel
(injustiça social, idolatria e infidelidade a Javé).
Descrições mais concretas são encontradas em: (a) Is 42,18-25 que
destaca a cegueira e surdez de Jacó/Israel, que não ouviram a Torá de Javé e não
andaram em seus caminhos – nem a Torá nem os profetas foram capazes de
fazer Jacó/Israel prestarem atenção a Javé. A nação pecadora preferiu ouvir a si
mesma, aos seus próprios sábios e mestres, ao invés de ouvir a Javé e seguir os
seus caminhos de justiça; (b) 43,22-28 é construído ao redor da temática do
senhor/escravo, destacando que Jacó/Israel não serviu a Javé, não o honrou com
o seu culto ou com sua vida, ao contrário, fez do culto um auto-serviço e do
Senhor um escravo dos interesses da nação. Muito provavelmente, o texto é uma
releitura das tradições de Jacó, especialmente Gn 27-32, destacando o
comportamento do povo de Deus que desonrou a Javé e causou, assim, a perda
de sua “primogenitura”. Ao invés de acusar Javé de esquecimento de seus
compromissos com Jerusalém e a dinastia davídica, os acusadores deveriam
reconhecer a sua própria condição de infidelidade e pecado, e agradecer a Deus
pelo gracioso perdão que passou a lhes conceder; (c) 48,1-11 destaca a falsa
confiança na proteção de Javé e a teimosia dos dirigentes de Jerusalém que não
agiam em conformidade com a aliança de Javé, mas exigiam dele o
cumprimento de “sua” parte no trato – proteger Jerusalém e a dinastia davídica.
Denúncias similares sobre a falsa confiança em Javé são encontradas em Am
3,2; Os 12,3-4; Jr 2,4; 9,3; enquanto afirmações sobre a teimosia de Judá/Israel
são comuns na tradição deuteronomista (e.g. Dt 10,16; 31,27; Jr 7,25-26). Javé
não deixou de denunciar o pecado e prevenir contra o castigo, mas não foi
ouvido, e teve de cumprir a ameaça; e (d) 51,17-23 utiliza a metáfora da
embriaguez para se referir tanto ao castigo de Javé quanto à pecaminosidade de
Jerusalém. A metáfora da embriaguez tornou-se um tópico relativamente
freqüente na profecia (Is 5,11-17; 28,1-6.7ss; 29,9-16; Jr 13,12-14; 25,15-38; Ez
23,32-34), destacando não só o pecado, mas também o castigo de Javé contra a
nação pecadora. A irracionalidade da embriaguez figurativiza, portanto, a
irracionalidade do pecado, a conduta que não se adequa ao ensino e à aliança de
Deus com o seu povo. Como no pensamento vétero-israelita, a culpa e o castigo
sobre a culpa formam uma unidade com o pecado, a utilização da mesma
metáfora da embriaguez para figurativizar o juízo de Javé não é de se estranhar.
2.2. Povo perdoado e resgatado por Javé
Se o pecado de Jacó/Israel-Jerusalém/Sião foi de tal monta que obrigou
Javé a cumprir suas ameaças e castigar a nação com o fim do reino e a
deportação dos dirigentes, a grandeza do poder e da misericórdia de Javé
ultrapassa em muito o mal, e faz com que a última palavra de Deus para o seu
povo pecador não seja a de castigo, mas a de perdão, consolo e libertação. A
teologia do segundo-Isaías destaca a justiça de Javé em condenar e castigar seu
povo, uma forma de teodicéia necessária para se contrapor ao discurso babilônio
da grandeza de Marduque. Justificado, Javé enfatiza, através da pregação do
servo, a sua misericórdia e a sua fidelidade para com o povo de sua eleição –
que se tornarão eficazes mediante a libertação do domínio babilônico e o retorno
a Jerusalém reconstruída e redignificada. Além do efeito justificador de Javé, a
ênfase sobre a justiça do castigo tem como papel essencial chamar a atenção dos
exilados e convocar-lhes a voltar a crer no Deus de Israel – que não se esquecera
deles, como chegaram a pensar (cf. 40,27-31; 49,14-26; 50,1-3). No exílio, a
lógica vétero-oriental da derrota do deus do país conquistado pelo deus do
conquistador fazia todo sentido para os judaítas. Vários deles passaram a
configurar sua identidade a partir dessa lógica, aderindo à religião dos
babilônios, e condenando Javé pela situação em que se encontravam. A
teodicéia de Javé anula a “etnodicéia” dos exilados, e convoca à reconstrução da
identidade judaíta em novos termos – centrada na fidelidade a Javé e não na
auto-segurança da dinastia (e da nação).
As metáforas de base para a construção da nova identidade do povo de
Deus, em Isaías 40-55 são, principalmente: (a) novo êxodo (40,3-8; 43,9-21;
45,14-25; 47,4; 51,1-16), que excederá o primeiro em grandeza e glória,
revelando a todas as nações o braço forte e a mão estendida de Javé em favor do
seu povo humilhado. Neste novo êxodo, três são os protagonistas humanos
destacados – o escravo de Javé que anuncia o seu agir (passim); Ciro, que será
instrumento de Javé para tirar os exilados da Babilônia (45,1ss) e o próprio povo
que é convocado a sair da Babilônia, a fugir dela para voltar a Javé (48,20;
52,11-12); (b) o reinado de Javé (40,9-11; 52,7-12), que é anunciado como uma
boa notícia aos castigados, como o retorno de Javé a Jerusalém/Sião para
novamente apascentar e governar seu povo; (c) uma nova aliança, de plenitude
(54,10: ymiAlv. tyrIb.W), intermediada não mais pela dinastia davídica (55,1ss), mas pelo servo fiel a Javé (42,6; 49,8), e que se estenderá a todas as nações – fazendo, assim, de Israel/Jacó testemunha de Israel para os povos (cf. 43,9-21; 44,24-28); e, a novidade do segundo-Isaías, a da libertação como criação (43,1ss; 44,2.24; 46,3; 54,5). Javé não só é o criador de céus e terra, como é também o criador de Israel/Jacó – tema impressionante na medida em que se contrapõe à cosmogonia babilônica (que é também uma teogonia), e reafirma a exclusividade e a singularidade de Javé, o único Deus (54,5).
Uma característica que ressalta dos vários textos acima indicados, no que
tange às tradições judaico-israelitas do êxodo, reinado de Javé e aliança, é o
caráter superlativo do novo agir de Deus, de tal monta que os ouvintes são
exortados a se esquecer das coisas passadas (43,18-19), e a contemplar o novo, a
novidade do agir de Javé. O uso de linguagem tão exaltada e superlativa possui
um importante efeito retórico para ouvintes que, como os judaítas exilados,
corriam o risco de abandonar, ou já haviam abandonado a sua identidade
anterior, em prol da nova identidade proposta na nova situação de minoria
oprimida e humilhada. Se Javé fora capaz de libertar os hebreus do Egito, não
será tão mais capaz e poderoso para libertar dos babilônios? Se o império
egípcio fora grandioso e o babilônico se apresentava como imbatível e
indestrutível (caps. 46-47), nada menos do que uma retórica exaltada do poder e
da majestade de Javé seria necessário para reconduzir os exilados ao caminho da
fidelidade a Javé e da confiança em um futuro desligado da Babilônia. Isto nos
leva, enfim, a uma reflexão sobre a utopia do segundo-Isaías, como o marco
final no processo de construção da nova identidade do povo de Deus.
2.3. Povo grandioso: a utopia da nova família de Javé
A utopia do segundo-Isaías está diretamente ligada à ação de Javé, que
constitui a identidade do seu povo. A primeira marca da visão de um novo Israel
é a afirmação triunfante do reinado de Javé (40,9-11; 52,7-11). Com Javé como
rei, Israel estará livre do domínio de outras nações e estará livre também da
condenação a que foi submetido por seu próprio pecado. Que Javé reina é uma
boa-notícia, um evangelho para Israel, que dá força aos cansados, ânimo aos
desanimados, coragem aos enfraquecidos. O reinado de Javé tem
Jereusalém/Sião como o seu espaço central, mas do qual se irradia para todas as
cidades de Judá (40,9-11), cidade destruída, apenas ruínas que serão
reconstruídas e restauradas como uma nova cidade que dará testemunho do
evangelho do reinado de Javé.
A soberania libertadora de Javé, por sua vez, carrega em si a marca da
justiça (e.g. 41,2; 42,1-4; etc.), que é o sinônimo da libertação e da justiça social.
Nas tradições do davidismo, a justiça é implementada na terra pelo rei (e.g. Sl
72), que representa Javé como governante e juiz do seu povo. No segundo
Isaías, o rei está ausente da implementação da justiça, tarefa que cabe ao servo
de Javé e ao próprio povo de Javé que deve buscar a justiça (51,1ss). Na bela
descrição da justiça do povo de Deus no capítulo 51, as figuras de Abraão e Sara
são evocadas para despertar a memória para o poder de Deus que, do nada, pode
fazer brotar a vida. Buscar a justiça de Javé também significa andar nos
caminhos de Javé e seguir a Sua Torá (51,4.7), de modo que é refletindo o agir e
o caráter de seu Deus que o povo israelita encontrará a sua nova identidade e
reconstruirá a sua nação em novas bases. Concretamente, isto evoca o problema
da distribuição das terras, uma vez que os exilados eram os possuidores da maior
parte da terra judaíta – embora isso tivesse sido conseguido graças ao pecado
(e.g. Is 5,1ss; Mq 2,1-5; 3,1-4). Se a volta dos exilados exige a busca e a
implementação da justiça, e se Jerusalém será evangelista para Judá, o direito
dos que ficaram na terra deverá ser considerado seriamente – a antiga noção da
herança familiar deve estar no pano de fundo desta dimensão da utopia
deuteroisaiânica. Em 49,5-6.8 podemos encontrar um indício nessa direção, na
afirmação da restauração das tribos de Jacó juntamente com os exilados de
Israel.
Mas a metáfora mais impressionante e dominante no segundo Isaías é a
da reconstrução e repovoamento de Jerusalém/Sião (40,2.9; 44,26-28; 46,13;
49,14ss; 51,3.17ss; 52,1-12; 54,1-17). O tema perpassa todo o livro, sendo
indicado na primeira parte e desenvolvido exaustivamente na segunda. Os
capítulos 51, 52 e 54 tratam, com profusão de metáforas e detalhes, da
restauração da cidade santa de Javé, a morada do Rei e Santo de Israel, abrigo e
habitação dos filhos de Israel. O contraste entre a condição real de Jerusalém,
destruída, arruinada, desabitada; e a nova realidade que será levada a efeito por
Javé, através de seus servos, não poderia ser maior. Aproveitando a metáfora da
esposa e da mãe, o laço entre Javé e Jerusalém é apresentado de forma
intensamente pessoal, destacando o caráter familiar do novo povo de Deus,
ansiado pelo profeta. Conquanto o segundo Isaías seja crítico das tradições da
inviolabilidade de Sião, em sua utopia apresenta também a promessa de que
Javé protegerá a sua cidade e fará dela o centro de seu governo mundial (54,3).
O que distingue a pregação do segundo Isaías da tradição sionista préexílica
é que o fundamento da nova Jerusalém não é cúltico, mas ético – apesar
da ênfase em Sião, não há ênfase correspondente sobre o Templo e o culto
sacrificial. Isto sugere que os autores desta utopia estavam ligados ao culto, sim,
mas principalmente à dimensão didática do serviço sacerdotal. Na nova
Jerusalém, todos os seus habitantes serão discípulos de Javé (54,13), figura que
evoca o próprio servo de Javé como aquele que escuta ao seu Deus.
Evidentemente esta metáfora do discipulado está em contraste com a descrição
do pecado pregresso de Jerusalém como cegueira e surdez (vide acima). Não
mais cega e surda aos caminhos e à instrução de Javé, Jerusalém se tornará uma
cidade verdadeiramente santa e justa, pelo que receberá a proteção de seu Deus.
Morada dos discípulos de Javé, Jerusalém será cidade da justiça (54,14), da qual
toda opressão será afastada e toda injustiça será banida. É esclarecedor ler o
capítulo 54 à luz de Isaías 1,21-31. A Jerusalém pré-exílica se dizia santa,
morada de Javé, sede da justiça, trono do Senhor mas era, na verdade, a capital
da injustiça social e da negação do reinado de Javé. A nova Jerusalém terá Javé
como seu rei (Is 52,7ss), seguirá as palavras do Senhor (51,16) e efetivamente
fará da justiça os seus alicerces (54,14). E tudo isso virá do próprio Javé (54,17),
de modo que não se poderá tomar esta descrição como algo de cunho
sacramental, automático, mas como uma utopia no sentido pleno da palavra,
uma nova cidade a ser construída pelo novo povo de Deus, seguindo a Torá do
Senhor, andando na santidade do seu Deus, praticando a justiça do seu Criador e
Redentor, e submetendo-se ao governo justo de seu Rei.

Conclusão

A nova identidade do povo de Deus tem sua base na nova concepção da
identidade de Javé. Se o Senhor de Israel é o único Deus, aquele que criou o
mundo e o seu povo, que libertou e libertará seu povo perante as nações, que
realizou e realizará a justiça e manifestará sua soberania entre todos os povos –
então o povo de Deus, reconduzido à sua terra, será testemunha viva desse Deus,
testemunha concreta, não em palavras, mas em atos, reconstruindo a sua
identidade agora nessas novas bases, identidade de aprendiz, discípulos e
discípulas de Javé que efetivamente encontrarão no serviço a sua real identidade,
o grande desafio da sua utopia.
Resta a pergunta pela concretude sócio-política desta redescrição da
identidade do povo de Javé. Parece-me claro que a proposta não é a de
restauração do reinado davídico e da sua religião oficial centrada no Templo de
Jerusalém. Tanto a casa davídica quanto o templo recebem pouquíssima atenção
em Is 40-55 e, especialmente a primeira, quando é mencionada não o é em
termos messiânicos. Parece-me claro, também, que a proposta utópica de Is 40-
55 é de cunho urbano e não camponês – pelo que o papel primordial de
Jerusalém na concretização do reinado de Javé em Judá e Israel. O uso paralelo
dos termos Jacó/Israel e Jerusalém/Sião sugere uma restauração da aliança entre
as famílias e “tribos” judaítas e israelitas, com a capital Jerusalém como o foco
de um governo centrado na crença em Javé, deus libertador – uma espécie de
neo-tribalismo. Este tema, porém, merece muito maior atenção do que é possível
fazê-lo neste contexto. Ficam, assim, apenas estas brevíssimas sugestões.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

BENIGNIDADE E SOBERANIA DE DEUS

Chaves Teológicas da Missão do Povo de Deus

por Júlio P. T. Zabatiero

A missão do povo de Deus, em resposta ao agir de Deus no mundo, é
multidimensional e integral, conforme se descreve nas palavras do lema
evangélico: “todo o Evangelho, para o ser humano como um todo, a todo
o mundo, para todas as pessoas.” Muitas são as atividades ministeriais
que compõem a missão do povo de Deus, e é necessário que tenhamos
critérios teológicos sólidos que nos permitam definir prioridades e estabelecer hierarquizações dos ministérios da missão. O propósito deste estudo é refletir sobre dois critérios teológicos presentes no Antigo Testamento, que podem nos ajudar a organizar a atividade missionária da Igreja.

1. A benignidade de Javé e a libertação humana

Na reflexão teológica latino-americana, o êxodo é uma das chaves da
leitura do Antigo Testamento, e um dos eixos da sua teologia. Certamente “não foram as comunidades latino-americanas que descobriram a centralidade do êxodo. Esta é uma conquista da teologia bíblica internacional” (SCHWANTES, M. “Teologia Bíblica junto ao povo”in Teologia do Povo, no. 3 da revista Estudos da Religião, CEPGCR, São Bernardo do Campo, p. 51). O que caracteriza a teologia latino-americana em sua apropriação do êxodo é que o mesmo é lido realistica e conflitivamente, ou seja, é lido em sua concreticidade de luta de um povo oprimido pela sua libertação. Esta é a novidade fundamental da teologia latinoamericana (seria melhor dizer teologias latino-americanas): o êxodo é um evento histórico, social, concreto e deve ser lido como tal, não podendo ser espiritualizado ou mesmo reduzido a uma função tipológica dentro do “drama histórico da salvação”. Ler o êxodo historicamente significa lê-lo como evento libertador de escravos, de pessoas oprimidas por um sistema político injusto.
A questão em jogo aqui não é semântica ou meramente teórica. Deriva,
sim, da práxis missionária de inúmeras comunidades cristãs latinoamericanas. Em um continente pobre e dependente, redescobre-se a dignidade humana no relato dos hebreus escravizados no Egito que, sob a poderosa mão de Javé, são libertados para se tornarem povo de
Deus, um povo agente histórico de transformações sonhadas pelo próprio Deus. Esta conjunção do relato bíblico com a práxis missionária de comunidades cristãs latino-americanas sugere uma nova perspectiva
para a construção da teologia da missão a partir do Antigo Testamento.
Perspectiva dominada pela noção e experiência da liberdade divina e da
libertação humana. Quais são os aspectos teológicos do êxodo que podem servir de critérios para a nossa atuação missionária?
1.1. Javé é um Deus milagrosamente ativo nas lutas humanas por vida e
liberdade (Êx capítulos 13 a 15). A linguagem do milagre é típica do
campesinato israelita da época inicial da ocupação de Canaã. Camponeses
hebreus sem exército profissional lutavam contra as cidadesestado
cananéias com grande desvantagem, e assim, dependiam de
seu Deus e atribuíam a Javé a vitória em suas batalhas (por exemplo,
Juízes capítulos 4-5). Nesses relatos nota-se que o milagre de Javé não
é exibicionista, não visa estabelecer a glória do seu autor, mas realizase
a favor dos fracos, contra os poderosos. Como tal, é celebrado pelo
povo de Deus com hinos de louvor. O milagre estimula a festividade, o
culto, a celebração. O milagre libertador estimula a fé e a gratidão cantadas pelo povo que experimenta o poder de Deus (Êx 15 e Jz 5);
1.2. Javé é o Deus de hebreus A palavra hebreu, originariamente, não
indica um grupo étnico, mas um grupo social. Hebreu é o marginalizado
pelo poder político-econômico, somente bem tarde na história de Israel é
que o termo hebreu veio a ser usado como termo étnico. No livro do Êxodo, e somente nele, Javé é chamado de Deus dos hebreus (3:18; 5:3;
7:16; 9:1,13; 10:3), ou seja, Deus dos escravos oprimidos pelo Egito. Em
muitas referências ao povo de Deus, o termo hebreu é usado quando se
quer destacar a fragilidade, marginalização ou sofrimento do povo (I Sm
4:6,9; 13:13,19; 14:11,21; 29:3; Gn 14:13; 39:14; 40:15; 43:32; Dt 15:12;
Jr 34:9). Javé, antes de ser Deus de uma etnia é o Deus de oprimidos,
de marginalizados, de escravos – sejam de que etnia forem.
De Javé, no Êxodo, se afirma que viu o sofrimento e ouviu o clamor dos
escravos hebreus (Êx 2:23s; 3:7,9; 6:5). Javé optou por um segmento
populacional específico, optou por ouvir o clamor de escravos, é o deus
daqueles que clama sob os fardos da injustiça, sob o açoite de feitores.
Se o termo optou provoca dificuldades, cabe lembrar que ele apenas atualiza um outro termo teológico que também gera polêmica, o termo elegeu
(cf., por exemplo, Dt 7:7-8). Por ser parcial em seu agir na história
é que Javé é um Deus universal. O Deus de hebreus não é universal
porque criou todas as pessoas, mas exatamente porque – na história –
opta por algumas dentre todas as pessoas e povos que criou. Na linguagem paulina, Deus é universal porque optou pelos pecadores, ou,
nas palavras de Jesus, “eu não vim chamar justos, mas pecadores”, referindo-se a publicanos e pecadores desprezados pelo Judaísmo oficial
de sua época – publicanos e pecadores, alguns dentre os hebreus da
época de Jesus (v. Mc 2:13-17). Como afirma Schwantes, “ao ser designado ‘deus dos hebreus’, Javé, de saída é designado como Deus universal. Como Deus concreto na história de um dos grupos de hebreus,
Javé é, potencialmente, Deus de todos os escravos. A teologia véterotestamentária, em seu nascedouro, não é, pois, racial ou nacional, mas universal porque, concreta e parcialmente, comprometida com as classes populares” (Teologia do Antigo Testamento, São Leopoldo, EST, p.33)
1.3. Javé é o Deus da Terra. Ao prometer libertação aos hebreus, Javé
desencadeou um projeto histórico de grandes proporções (Êx 3:8,17). A
questão crucial para os hebreus não era apenas a de sair do Egito, mas
sair para deixar de ser hebreu, sair para viver com liberdade e dignidade.
Possuir terra seria uma condição indispensável para o projeto de vida
dos hebreus. Tendo a terra, teriam onde viver com liberdade, onde
produzir seu próprio alimento, conseguir seu sustento, reproduzir a vida.
Por isso, Javé promete conduzi-los a “uma terra boa, terra que mana leite
e mel”. A vida em liberdade, porém, não é fácil. É vida em conflito. A
terra prometida era a terra dos cananeus, dos heteus, dos amorreus ...
Era uma terra dominada por cidades-estado, opressoras como o regime
egípcio. Portanto, Javé estimula os hebreus a um novo projeto missionário libertador. Não basta sair do Egito e resolver seu problema. Há que se ir a Canaã e solidarizar-se com os hebreus lá, construir na terra da opressão um novo povo, que implantasse a Lei da liberdade, a Lei de Deus.
1.4. Javé é o Deus (da) gente. O relato do êxodo fala de um Deus que
se compadece do sofredor (2;23s; 3:7,17). É Deus que vê, ouve, conhece, desce ... Os verbos usados no texto bíblico descrevem um profundo envolvimento pessoal de Javé com os hebreus. Tão profundo que implicava no endurecimento do coração de Faraó (Êx 7:3s; 9:16; cf. 7:14), na ira contra Moisés (Êx 4:14) e, depois, contra os próprios hebreus que se rebelam contra Javé no deserto. A liberdade soberana da opção divina flui com clareza espantosa nas suas relações com hebreus e com os opressores de hebreus. Javé opta por hebreus, mas não se submete a eles, permanece como o Senhor. Ao Senhor Moisés clama em benefício dos hebreus acovardados diante da Terra da promessa: “Agora, pois, rogo-te que a força do meu Senhor se engrandeça; como tens falado, dizendo: O Senhor é longânimo, e grande em misericórdia, que perdoa a iniqüidade e a transgressão, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração. Perdoa, pois, a iniqüidade deste povo, segundo a grandeza da tua misericórdia, e como também tens perdoado a este povo desde a terra do Egito até aqui” (Nm 14:17-29). Javé é um deus pessoal, cuja personalidade é vibrante, contagiosa. Movido por benignidade (compaixão, misericórdia) Ele age em prol dos aflitos que clamam, e entra em um relacionamento pessoal com eles – relacionamento
de aliança. “Na tua benignidade guiaste o povo que libertaste” (Êx 15:13a). Em Êx 19:3-6 a benignidade de Deus produz um pacto,
uma aliança, e os hebreus são chamados de ‘reino de sacerdotes e
nação santa”, linguagem deuteronômica, fiel à personalidade e ao projeto
histórico de Javé. A aliança não “nacionaliza” a libertação, pelo contrário,
na sua particularidade (nação santa) a re-universaliza (reino de
sacerdotes).
Sendo pessoal, Javé demanda resposta também pessoal de seu povo.
Aos hebreus ele prometeu e concedeu libertação, mas exigiu fé, exigiu
uma resposta comprometida com o Seu projeto de liberdade. No relacionamento de aliança exige santidade e sacerdócio aos povos – já exige “evangelização” desde o início. É essa “evangelização” que configura o povo judeu, pois é a fé comum – em Javé – que une várias etnias, vários grupos de hebreus em um só povo. Poderíamos esquematizar estas dimensões missiológicas do êxodo da seguinte forma:

JAVÉ POVO DE DEUS
Universalidade Parcialidade
Incomparabilidade Historicidade
Pessoalidade Socialidade
Benignidade Santidade

2. A soberania de Javé e a utopia da liberdade
Na reflexão teológica latino-americana, o Reino de Deus é outra chave
de leitura e eixo teológico do Antigo Testamento. Como no caso do êxodo, esta constatação também é um dado já comum na pesquisa teológica internacional. Deus reina! Javé é rei! São exclamações teológicas centrais para a fé do povo de Deus no Antigo Testamento. Esta é a própria idéia fundamental da redescoberta do reino de Javé na teologia do Antigo Testamento: Javé reina, o Reino de Deus é um conceito dinâmico, tem a ver com a ação de Deus na história e vida dos povos: “a aplicação a Javé da palavra rei não tem estabelecida a sua data exata, mas o sentido é claro desde o princípio: a partir dos acontecimentos salvíficos experimentados por Israel e atribuídos a Javé, Ele é conhecido como aquele que tem domínio sobre Israel e sua história” (SOBRINO, J. Cristología desde América Latina, 2a. edição, p. 32) Êxodo 15:18 representa suficientemente a essência da idéia do reino de Deus no Antigo Testamento: “Javé reinará eterna e perpetuamente”. O cântico do qual este verso faz parte é um tributo de adoração a javé pelos seus atos poderosos a favor dos hebreus. É um reconhecimento repetido mais tarde por Gideão (Jz 8), que se recusa a reinar sobre Israel, afirmando: “nem eu dominarei sobre vós, nem meu filho, mas o Senhor sobre vós dominará” (Jz 8:23).
2.1. A universalidade do reinado de Javé
O Salmo 47, um dos salmos do Reino de Javé (47; 93; 96-99), é um
grande convite a todo o cosmos para louvar e exaltar o Deus Javé. (a)
Nos versos 3-6 Javé é aclamado como o rei de Israel, o povo que ele
mesmo escolheu como objeto especial de seu amor eletivo. Através
deste povo Javé iria difundir seu governo a todos os povos da terra e a
todo o cosmos. Povo escolhido, os hebreus agora organizados como
povo, deveriam ser as primeiras testemunhas da soberania de Javé. (b)
Nos versos 3, 8 e 9 Javé é exaltado como o rei de todas as nações, aquele que subjugou povos a Israel. Porém, o domínio exercido não é o
de um déspota, mas o de parceiro de aliança: “os inúmeros príncipes e
povos devem se tornar um só povo; já não serão os de fora, mas de
dentro da aliança” (KIDNER, D. Salmos: Introdução e Comentário, São
Paulo, Vida Nova e Mundo Cristão, p. 199). (c) O domínio real de Javé
abrange, além de Israel e todos os povos, “toda a terra” (versos 2b e 7).
A expressão toda a terra aponta para o domínio cósmico de Deus: “nestas declarações, que na sua maior parte pertencem à tradição da soberania real de Deus, Javé aparece como aquele que garante a ordem
cósmica ... (aquele que tem) a soberania sobre o cosmos” (OTOSSON,
M. “erets”, Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids,
Eerdmans, vol. 1, pp. 394-395). Em síntese, Javé é rei de um povo peculiar, a fim de que todos os povos venham a ser parte desse um povo; é o rei de todo o Universo, aquele que garante a permanência da vida na des-ordem criada pelo pecado humano.1
2.2. O caráter utópico da soberania de Javé
A soberania de Javé é universal e seu domínio tem um caráter utópico2
que pode ser percebido, por exemplo, em Isaías 11:1-16 e 65:17-25. As
características principais dessa utopia podem ser descritas com brevidade e simplicidade: (a) no reinado de Javé haverá um perfeito relacionamento entre as pessoas e Deus, caracterizado por: prática de um governo justo (11:1-5), resposta de Deus às orações antes delas serem proferidas (65:24); louvor alegre e exuberante diante da majestade divina (65:17-19), e pleno conhecimento de Deus (11:9); (b) haverá um perfeito relacionamento social, caracterizado por: ausência de conflitos
pessoas e nacionais (11:10-16); ausência de tristezas (65:19); ausência
de mortalidade infantil (65:20); apoio à velhice (65:20). Ninguém trabalhará
para encher os cofres de terceiros, mas todos gozarão do fruto das
próprias mãos (65:22-23); não haverá carentes, pois todos terão terra,
trabalho e dignidade (65:21-22); (c) haverá um perfeito relacionamento
entre as pessoas e a natureza, caracterizado pela ausência de violência
e problemas ecológicos (11:6-8a; 65:25).
Sendo utópico, o reinado de Javé se nos apresenta como tarefa missionária, rearticulada e retomada por Jesus Cristo, e entregue à Igreja. “Jesus articula um dado radical da experiência humana, sua principal esperança e dimensão utópica. E promete que já não será utopia, objeto de expectativa ansiosa (cf. Lc 3:15), mas topia, objeto de alegria para todo o povo (cf. Lc 2:9)” (L. Boff, citado em SOBRINO, J. Cristología desde América Latina, p. 33)
Podemos representar graficamente o reinado de Javé, como eixo
teológico da missão, da seguinte forma:

JAVÉ REINA SOBRE PERFEITO RELACIONAMENTO ENTRE
seu povo pessoas e Deus
todos os povos povos e povos
toda a terra pessoas e a natureza

Neste esquema vemos, nos relacionamentos horizontais, as dimensões
da integralidade da missão da Igreja: seu povo, dimensão existencialreligiosa; todos os povos, dimensão sócio-econômica; toda a terra, dimensão cósmico-ecológica. E no eixo da verticalidade, vemos a superação de particularismos teológicos. Se nos restringimos à primeira dimensão, caímos no fundamentalismo; se à segunda, no secularismo; se à terceira, no misticismo naturalista.
Diante da multidimensionalidade da missão da Igreja, perante os inúmeros e profundos desafios que a realidade presente nos coloca, é preciso saber priorizar e organizar a ação missionária da Igreja. O Antigo Testamento nos oferece pistas concretas para construirmos os critérios do discernimento missionário: a benignidade e a soberania de Javé. A partir delas, nelas e por meio delas, pode o povo de Deus realizar a sua missão!

1 Veja o capítulo “Reino de Deus: Paradigma da Missão da Igreja” neste mesmo volume.
2 Para o conceito de utopia, v. HINKELLAMMERT, F. J. Crítica à Razão Utópica, São Paulo, Paulus.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A imprevisibilidade fiel de Javé

Um eixo da Teologia do Antigo Testamento

Introdução

Há um consenso entre estudiosos do Antigo Testamento no tocante ao
fato de que a Teologia do Antigo Testamento não possui um centro, mas
vários eixos de significado que articulam a pluralidade do testemunho de
Israel ao agir e falar de seu Deus. Na teologia latino-americana recente, os
eixos do êxodo e do reinado de Javé têm sido bastante explorados e
discutidos, com resultados importantes para a compreensão teológica do
Antigo Testamento e seus vínculos com a nossa práxis cristã contemporânea.
Esses eixos destacam primariamente as dimensões social e política da fé em
Javé, dimensões importantes e relevantes para a fé cristã na América Latina.
A partir desses eixos, desenvolveu-se também toda uma reflexão e renovação
nas práticas da espiritualidade e das relações pessoais.
Um terceiro eixo da teologia do Antigo Testamento é o da
imprevisibilidade fiel de Javé (e, conseqüentemente, sua fidelidade
imprevisível). Este eixo visa destacar a dimensão pessoal-relacional do
testemunho sobre Javé no Antigo Testamento, mas não em detrimento das
dimensões social e política. A pessoa e as relações que ela estabelece
ocorrem em contextos sócio-políticos específicos, em situações concretas
que, tanto moldam como são moldadas pelas ações e relações pessoais.
A escolha também aponta para um dado fundamental da teologia do
Antigo Testamento que é a centralidade de Javé, seu agir e seu caráter. O
tema primeiro de uma teologia bíblica do AT é Javé, e ao redor desse tema
outros poderão ser tratados de forma mais adequada. O agir libertador de
Javé (êxodo), o agir transformador de Javé (crítica profética), seu agir
soberano (reinado de Javé) são dimensões que, juntamente com o agir
pessoal de Javé (imprevisibilidade fiel), constituem os parâmetros de uma
teologia do AT relevante para a práxis cristã contemporânea. Como não é
possível abordar todos os textos e temas mais importantes, o nosso enfoque
recairá sobre a imprevisibilidade fiel de Javé manifesta no quase sacrifício de
Isaque – em Gênesis 22,1-19 e algumas de suas releituras no próprio Antigo
Testamento e no Judaísmo antigo.
Nesta escolha, está presente a influência da chamada pósmodernidade,
ou hiper-modernidade (o termo preferido de Giles Lipovetski),
que recoloca a dimensão pessoal no centro das questões intelectuais,
políticas e econômicas. Uma leitura crítica na pós-modernidade, entretanto,
não nos permite isolar a dimensão pessoal das lutas políticas e sociais – algo
que também no AT não se podia fazer. Por fim, a escolha também visa
destacar a dimensão litúrgica do pensar e fazer teológico em conexão com a
práxis missional do povo de Deus. Um dos hinos mais cantados no mundo
evangélico contemporâneo tem como seu tema a fidelidade de Deus:

Tu és fiel!
Tu és fiel, Senhor, meu Pai celeste;
Pleno poder a teus filhos dará
Nunca mudaste, Tu nunca faltaste
Tal como eras, Tu sempre serás
Tu és fiel Senhor, Tu és fiel Senhor,
Dias após dia,
Com bênçãos sem fim
Tua mercê me sustenta
E me guarda
Tu és fiel Senhor, Fiel a mim!
Flores e frutos, montanhas e mares,
Sol, lua, estrelas, no céu a brilhar!
Tudo criaste, na terra e nos ares
Todo universo vem, pois, Te louvar
Pleno perdão Tu dás, paz, segurança
Cada momento me guias, Senhor
E no porvir, oh! que doce esperança
Desfrutarei do teu rico favor!

Animados pelo louvor, passemos ao estudo de nosso tema.
Pensando sobre fidelidade e imprevisibilidade
“... pelo que também lhes dei estatutos que não eram bons, e normas
pelas quais não alcançariam a vida; e permiti que se contaminassem com
seus dons sacrificiais, como quando queimavam a fogo tudo o que abre a
madre, para confundi-los a fim de que soubessem que eu sou Javé” (Ez
20,25-26). Como pode o profeta afirmar, em nome de Javé, que o Deus de
Israel confundiu seu povo? Se Deus assim confundiu o seu povo, exatamente
por meio da sua lei, como confiar em Javé? Como prever as ações e reações
de Javé? Solto, assim, o texto é por demais chocante. E mesmo quando
recolocado em seu contexto, ainda mantém a sua estranheza. Javé não é um
deus previsível! Fiel, sim. Previsível, não!
Este, certamente, não é um dos textos mais apreciados do Antigo
Testamento, nem um dos que servem de base para a articulação teológica e
práxica. Entretanto, em seu caráter marginal, periférico, aponta para um tema
central de toda a Escritura (Antigo e Novo Testamentos), o sacrifício de
primogênitos. Este, por sua vez, é o tema concreto a partir do qual
desenvolverei a concepção da imprevisibilidade fiel e fidelidade imprevisível
de Javé. Percorremos um caminho sinuoso ao longo do cânon bíblico e da
história do povo de Deus, iniciando com a morte simbólica do filho da
promessa (Gn 22,1-19), culminando na morte real do filho prometido (Jesus
crucificado). Ao longo desse caminho, os vínculos paradoxais entre a
fidelidade e a imprevisibilidade de Javé mostrar-se-ão e orientarão nosso
pensamento e nossa práxis.

1. Fidelidade

Fiel é a pessoa em quem se pode confiar, de quem se pode depender
quando necessário. A fidelidade é a permanência, em uma pessoa, das ações
e dos valores que permitem a ela, e aquelas com quem ela se relaciona, se
re-conhecer e ser re-conhecida. A fidelidade é a permanência na mudança, no
devir constante da construção e reconstrução da identidade pessoal, social,
cultural, política, religiosa. A fidelidade é a marca dos relacionamentos
confiáveis, que dão segurança, estabilidade em meio à incerteza e
imprevisibilidade da vida. Segundo Sponville, a fidelidade é a virtude da
memória: “É este o dever da memória: piedade e gratidão pelo passado. O
duro dever, o exigente dever, o imprescritível dever de ser fiel!”1 E se
fidelidade é o dever da memória, reconhecemos a fidelidade de Javé em sua
memória: pois Javé se lembra de seus compromissos, mas se esquece dos
pecados de seu povo! Memória que não é só re-viver o passado, mas também
re-significá-lo, transformando-o no presente e futuro.
Fidelidade é virtude relacional, e a sua validade depende do objeto de
sua atração: "a fidelidade só deve dirigir-se ao que vale, e proporcionalmente
– se ouso dizer, já que se trata de grandezas por natureza não-quantificáveis
– ao valor do que vale. Fidelidade primeiro ao sofrimento, à coragem
desinteressada, ao amor...”2 Embora não se referindo a Deus, o texto de
Sponville é fiel ao caráter de Javé: deus fiel ao seu povo que sofre (Ele é o
Deus que ouve o clamor), fiel à salvação de seu povo (desce e liberta
corajosamente se solidarizando com o povo que sofre), fiel à aliança que
estabelece com os seus (hesed divina, amor misericordioso e fiel que
sustenta a relação familiar de Javé com seu povo).
Em meio às vicissitudes da história, Javé permanece fiel, e porque Ele
é fiel, também "o justo viverá por sua fidelidade” (Hc 2,4). Javé é fiel sim, mas
não previsível. Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, os
pensamentos de Javé não são os nossos pensamentos (Is 55,8), por isso
somos incapazes de capturar a Sua fidelidade e domesticar Javé conforme
nossa imagem e semelhança. No entanto, a fidelidade de Javé não é
sinônimo de previsibilidade. Javé é imprevisivelmente fiel: teimoso, se
preferirmos um adjetivo menos polido; zeloso, se escolhermos um adjetivo
extraído das Escrituras. O povo de Israel celebrava a fidelidade de Javé, mas
vez após vez, foi confundido por Javé para aprender que não poderia
controlar o seu deus como faziam outros povos do Antigo Oriente. Para
aprender que somente Javé é Deus, somente Ele mesmo é Javé – deus e não
ser humano.

2. Imprevisibilidade

A imprevisibilidade de Javé é a salvaguarda de sua liberdade, é a
proteção contra a idolatração de Javé, sua redução a um mero gênio da
lâmpada, a um mero guardião de interesses pessoais ou nacionais. Houve
quem tentasse aprisionar Javé em uma lógica sapiencial duvidosa, contra a
qual um livro como o de Jó se insurgiu. Afinal de contas, quem foi o
conselheiro de Javé na criação do mundo? Como prever as ações de alguém
que é tão sublime e exaltado? De um deus que se mantém oculto, mesmo
quando revelado (Is 45,15)? O mistério é característico de Javé, que não age
sem revelar seus segredos aos seus servos (Am 3,7), e que tornou
plenamente manifesto o mistério da Sua graça fiel em Jesus Cristo.
Javé é imprevisível, mas não arbitrário. Fielmente imprevisível, a sua
liberdade não O move de Seus propósitos amorosos, de Seus compromissos
solenes. Fidelidade imprevisível, lembrada após o dilúvio, e simbolizada pelo
arco da aliança, na bela linguagem mitopoética de Gn 9,8-19.
Imprevisibilidade fiel, daquele que jamais se esquece de seu amor, renovando
a cada manhã a sua misericórdia, a sua solidariedade para com as pessoas
que sofrem (Lm 3,22-23), pois "grande é a tua fidelidade”!
Imprevisível, mas não volúvel. Javé não troca de amores como quem
troca de roupa a cada novo dia. Imprevisivelmente fiel, Javé é amante
constante, jamais se afastando de quem dEle precisa. Amante fiel de toda a
sua criação, Javé não se retira, não se retrai, não a abandona à sua própria
sorte. Amante fiel de toda a humanidade que clama, Javé se apegou a Israel,
a ele se afeiçoou, por causa de Abraão, e de Abraão se afeiçoou por causa de
toda a humanidade (cf. Dt 7,7-11; Gn 12,1ss). Amante fiel, Javé enviou seu
filho amado ao mundo ...
Imprevisível como a vida, imprevisível como o cosmos. Imprevisível
como Ele mesmo, Javé é fiel e nos acolhe em sua família, em seu círculo de
amizades, de relacionamentos. Imprevisível, Javé permanece fiel a toda a
criação. Javé, acima de tudo, permanece fiel a Si mesmo. Amante e amigo, a
fidelidade de Javé é imprevisivelmente constante e firme. Imprevisivelmente
fiel, o compromisso solidário de Javé se renova a cada instante, renovando
conjuntamente toda a sua criação (cf. Is 43,19). Fielmente imprevisível, Javé
jamais se rende à mesmice, ao marasmo, ao tradicionalismo, à paralisia do
próprio medo. Fielmente imprevisível, Javé se faz notar por sua coragem de
viver entre nós, de habitar em Sua criação, de descer para nos fazer subir (cf.
Êx 3,6-10).

3. Construindo uma noção bíblica da fidelidade imprevisível de Javé

Acima, estudamos as noções de fidelidade e imprevisibilidade em nossa
cultura em diálogo com aspectos da cultura vétero-testamentária. Neste
tópico, ofereço alguns textos bíblicos para estimular você a construir a sua
própria compreensão da fidelidade imprevisível de Javé, sua imprevisibilidade
fiel.

3.1. O vocabulário vétero-testamentário da fidelidade de Javé
Em um dicionário de hebraico, você encontrará basicamente os
vocábulos acima, no quadro, que pertencem à raiz verbal !m;a.' Analisando o
uso deste vocabulário no Antigo Testamento, nota-se que o AT dá prioridade
ao uso dos verbos para caracterizar Javé. De fato, na cultura hebraica antiga,
a maior parte da fala a respeito de Deus era caracterizada por verbos de ação
e não pode adjetivos, substantivos ou por orações nominais. Boa parte das
teologias bíblicas escritas no mundo ocidental, entretanto, constrói seus
conceitos teológicos de forma mais típica de nossas culturas – ou seja, dando
preferência a orações nominais e ao uso de adjetivos e substantivos para falar
sobre Deus. Repare como até as definições do léxico, no quadro acima, são
mais ocidentais – por exemplo: ser fiel ao invés de agir de modo fiel. Reflita
sobre esta característica lingüística ao elaborar a sua própria noção da
fidelidade de Javé.
3.2. Confessando a fé em Javé que age fielmente
A fala sobre a fidelidade de Javé, no AT, se encontra principalmente

!m;a' ('¹man) confirmar, manter, sustentar (Qal); estar estabelecido,
firme, ser fiel (Nifal); ter certeza, confiar, crer (Hifil). !m,ao ('oemen)
fidelidade. !mea' ('¹m¢n) verdadeiramente, amém !M'a' ('omm¹n) firme
!muae ('¢m¥n) fiel, confiável hn"Wma/ ('§mûnâ) firmeza, fidelidade, segurança
hn"m.a' ('omnâ) II, verdadeiramente hn"m'a] ('¦m¹nâ) fé, certeza, segurança
~n"m.au ('¥mn¹m) verdadeiramente, de fato ~n"m.a' ('omn¹m)
verdadeiramente tm,a/ ('§met) firmeza, verdade !wOma' ('¹môn) II, artífice,
arquiteto.

em hinos, salmos de lamento, de ações de graças, e em declarações de fé.
Uma dessas declarações, que recebeu várias formas na história véterotestamentária,
é: "Saberás, portanto, que Javé teu Deus é o único Deus, o
Deus fiel (particípio Nifal do verbo !m;a)' , que mantém a aliança e o amor
(ds,x,h;w) por mil gerações, em favor daqueles que o amam e observam os
seus mandamentos; mas é também o que retribui pessoalmente aos que o
odeiam; faz com que pereça sem demora o que o odeia, retribuindo-lhe
pessoalmente” (Dt 7,9-10); ou "Javé, Javé. Deus de ternura e de piedade,
lento para a cólera, rico em graça e fidelidade (tm,a/w< ds,x,-br;w>); que guarda
sua graça a milhares, tolera a falta, a transgressão e o pecado, mas a
ninguém deixa impune e castiga a falta dos pais nos filhos, e os filhos dos
seus filhos, até a terceira e a quarta geração” (Êx 34,6-7); ou "Tu Senhor,
Deus de piedade e compaixão, lento para a cólera, cheio de amor e fidelidade
(tm,a/w< ds,x,-br;w>)” (Sl 86,15).
Comentando Ex 34,6-7, Brueggemann afirma: "O que nos ocupa é o
efeito cumulativo de todos estes termos juntos, que indicam a intensa
solidariedade de Javé e seu compromisso com aquelas pessoas a quem Ele
está ligado. Os adjetivos generalizantes asseveram, com base nas sentenças
verbais de testemunho tais como Salmo 136, que a vida de Javé com Israel é
marcada por uma lealdade fundamental, inalienável. A vida de Israel, neste
ponto axial de risco em Ex 34, é agora garantida pela afirmação, dos próprios
lábios de Javé, que Javé se mantém em completa fidelidade a Israel, mesmo
entre aqueles que praticam 'iniqüidade, transgressão e pecado'.”3
3.3. A fidelidade imprevisível de Javé
A palavra hn"Wma/ é, muitas vezes, traduzida pelo termo verdade, como
no Salmo 146,6: "Ele mantém para sempre a verdade/fidelidade” (cf. Sl 25,10;
40,12; 57,4; 85,11; 89,15). Fiel, Javé é verdadeiro, pelo que também se fala
de que a lei do Senhor é fiel, que os seus testemunhos são fiéis e verdadeiros
(Sl 19; Sl 119). Agindo fielmente, Deus também orienta seu povo de forma
confiável, segura, verdadeira. Por isso, um texto como Ez 20,25-26 se
sobressai. "A idéia chocante de que Deus engana aqueles que o irritam com
seus pecados, pelos quais Ele então os destrói, já aparecera em 14,9 (o
profeta enganado); pelo que se prova o erro da moderna tradução evasiva
para horrorizá-los. A noção presente em Ezequiel é basicamente a mesma
presente nos textos que falam do endurecimento do coração de Faraó para
que a sua ruína se tornasse uma lição concreta (Ex 9,16; 10,2); ou a presente
na ordem a Isaías para embotar seus ouvintes (Is 6,9ss); ou a presente na
queixa em Is 63,17 (cf., tb, I Rs 18,36b)”4.


1 SPONVILLE, A. C. “Fidelidade”, http://www.scribd.com/doc/6986981/Andre-Comtesponville-Pequeno-
Tratado-Das-Grande-Virtudes-03. Acesso em 12.11.2007
2 Idem.
3 BRUEGGEMANN, W. Theology of the Old Testament. Minneapolis: Fortress Press, 1997, p. 217
4 GREENBERG, M. Ezekiel 1-20. Nova Iorque: Doubleday, 1983, p. 369.

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