terça-feira, 29 de novembro de 2011

Um Deus à altura dos desafios da realidade (Isaías 40-55)

Júlio Paulo Tavares Zabatiero

Introdução

A destruição de Jerusalém e do Templo no monte Sião, bem como o fim do
reinado davídico e as deportações para a Babilônia, configuraram uma situação
nova para o povo de Judá, especialmente para os seus dirigentes e para todo o
pessoal mais diretamente ligado à corte davídica, tais como sacerdotes,
comerciantes, lideranças militares, “anciãos” grandes proprietários de terras, bem
como as mulheres e crianças em suas famílias. Nessa nova situação, a identidade
do povo judaíta1 foi abalada fortemente, especialmente em seus elementos
teológicos – tais como a crença na inviolabilidade de Sião, a fé no poder de Javé
em manter a dinastia davídica no trono, bem como a independência de Judá. Os
conteúdos teológicos e os aspectos existenciais da fé em Javé já não mais davam
conta dos desafios da situação, não contribuindo mais para a manutenção e
desenvolvimento da identidade do povo de Deus. Várias foram as respostas à
necessidade de reconfiguração da identidade, dentre elas, a que encontramos nos
capítulos 40-55 do livro de Isaías, que são reconhecidos predominantemente como obra de um (ou mais) autor(es) desconhecido, no período final da dominação babilônica, ou nos primeiros anos da dominação persa.

1 Que adjetivo pátrio aplicar ao “povo de Javé” é, por si só, um problema historiográfico. Judá não era o nome
nacional pelo qual os judaítas se reconheciam, mesmo após a “divisão do reino” (I Rs 12ss) – no próprio
Dêutero-Isaías se usam o nome Israel e o termo tradicional Jacó ou “casa de Jacó”. Judá se torna o nome da
região no período persa, pelo que se nomear seus habitantes como “judaítas”. O termo “judeu” é preferível para
designar os membros do “povo de Javé” após a reconstrução de Jerusalém no período de Esdras-Neemias. Neste
artigo, utilizo predominantemente o termo “judaíta”, no sentido mais neutro de habitantes da região conhecida,
posteriormente, como Judá. Conseqüentemente, “israelita” será o termo usado preferencialmente para os
habitantes do antigo “reino de Israel”. No caso das tradições teológicas, prefiro então usar o termo composto
judaico-israelita.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 2

A principal novidade teológica de Isaías 40-55, com forte impacto para a
reconstrução da identidade judaíta, é a sua redescrição de Javé, o deus dos judaítas e israelitas. Com seu estilo mais emotivo, von Rad expressou opinião semelhante, ao se pronunciar sobre a mensagem do profeta:
Javé ainda não havia falado deste modo pela boca de um profeta.
Jamais também se inclinou tão profundamente, em suas palavras,
para se aproximar de seu povo, jamais se despojou de tudo o que o
fazia temível, para não amedrontar nenhum daqueles que haviam
perdido a coragem. [...] O segundo-Isaías encontrou fórmulas que
revelam o coração de Deus duma maneira que causa espanto.2
O novo contexto, da dominação babilônia, demandou uma resposta
teológica à altura dos novos desafios colocados sobre a fé em Javé. A destruição
dos reinos de Israel e Judá, as mudanças populacionais e deportações, a derrubada da dinastia davídica, a destruição do Templo, a vida em novos ambientes – tudo isto precisava ser interpretado e colocado em perspectiva teológica. E nesse esforço de interpretação, a descrição de deus não podia deixar de ocupar lugar preponderante – na medida em que as bases da fé em Javé, conforme estabelecidas na teologia davidida e sionista, foram abaladas por todos esses acontecimentos.
Devemos estudar a redescrição3 de Javé em Isaías 40-55 como um
extraordinário esforço intelectual e existencial para dar conta desses desafios.
Esforço que, por um lado, deveria reinterpretar e reconfigurar as crenças
tradicionais em Javé; e, por outro, criar novos modos de falar de Javé em resposta à teologia dos babilônios. Dar novo sentido à situação de exilados e derrotados era

2 Von RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento. vol. II. São Paulo: ASTE, 1974, p. 240.
3 Uso o termo “redescrição” em sentido apropriado de Richard Rorty que, com o termo, destaca o papel da
filosofia como um pensamento não fundacional-metafísico. A redescrição está ligada à adoção de novo
vocabulário que permite o auto-crescimento e a adoção de um diferente conjunto de valores. Exemplos de
adoção de novo vocabulário, em Isaías 40-55, são a preferência pelo verbo ga'al ao invés de yatsa' e natsal para
se referir ao êxodo; o uso constante dos pares Israel/Jacó e Jerusalém/Sião; o uso dos verbos criar e formar para
se referir à libertação de Israel. Nessa linha de pensamento, tanto a filosofia como a teologia deveriam ser vistas
como buscas de justiça e não de verdade: “Se pararmos de pensar na verdade como o nome da coisa que dá
significado à vida humana, e pararmos de concordar com Platão em que a busca da verdade é a atividade humana
central, então poderemos substituir a busca da verdade pela esperança messiânica de justiça.” RORTY, Richard.
“Para emancipar a nossa cultura (Por um secularismo romântico)”. In: DE SOUZA, José C. (org.) Filosofia,
racionalidade, democracia. Os debates Rorty & Habermas. São Paulo: Unesp, 2005, p.88.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 3

o grande desafio teológico a ser enfrentado. Uma nova descrição de Javé foi o
passo principal nesse processo de reconstrução da identidade judaíta sob a
dominação babilônica.

1. A redescrição de Javé vis-a-vis o discurso babilônico sobre seus deuses

4
“Parece que a mensagem central de Isaías 40-55 pode ser construída como uma
espécie de imagem-de-espelho da ideologia expressa na liturgia akitu e no mito
Enuma Elish. O fato de que as únicas divindades estrangeiras nomeadas nestes
capítulos sejam Bel e Nebo – isto é, Marduque e seu filho Nabu (46,1-2), os
protagonistas divinos no festival akitu – apóia esta leitura do texto.”5

Não farei uma análise detalhada das relações intertextuais e
interdiscursivas que ligam Isaías 40-55 e textos mesopotâmicos do período.
Apresentarei apenas alguns exemplos que devem servir para nortear a descrição,
posterior, das características da crença em Javé no segundo Isaías.
Já no prólogo do Segundo Isaías (40,1-11), a polêmica contra a teologia
babilônia, especialmente contra Marduque6, se faz evidente. Isaías 40,1-2 apresenta Javé misericordioso, colocando fim aos “trabalhos forçados” do seu povo, justa punição sobre os seus pecados – com linguagem que lembra a seguinte passagem sobre Marduque, no tablete VII do Enuma Elish: “Ele é Agaku, o amor e a ira; com palavras vivazes ele apressa a morte, ele teve pena dos deuses caídos, ele diminuiu os labores que caíam sobre os adversários.” Isaías 40,3-5 redescreve a procissão triunfal dos deuses para/na cidade da Babilônia, como a procissão triunfal dos judaítas exilados retornando à sua terra – imediatamente seguida de uma declaração da fragilidade dos poderes humanos (40,6-8; cp. 47,1-15 que descreve a

4 Ao final do texto, anexei uma tradução da Tábua IV do Enuma Elish.
5 BLENKINSOPP, J. Isaiah 40-55: a new translation with introduction and commentary. New York:
Doubleday, 2002, p.107.
6 Veja o artigo de T. Abusch “Marduk” em TOORN, K. E outros (eds.) Dictionary of deities and demons in the
Bible. Leiden: Brill, 1999, p. 543-549. Para uma descrição genérica da religião mesopotâmica e sua relação com
a política, v. CARDOSO, Ciro F. S. Antiguidade Oriental: Política e Religião. São Paulo: Contexto, 1990,
especialmente p. 9-50); e GARELLI, Paul & NIKIPROWETZKY, V. O oriente próximo asiático. Impérios
mesopotâmicos-Israel. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1982.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 4

queda da Babilônia)7. À saída dos judaítas do exílio (que corresponde
inversamente à entrada dos deuses na Babilônia), corresponde a procissão de Javé para voltar a reinar em Jerusalém/Sião, brevemente descrita em 40,9-11. O
evangelho às cidades de Judá, declarando que Javé é rei, contradiz diretamente a
aclamação de Marduque como rei.8 Em 51,9-11, a descrição da procissão feliz dos exilados de volta a Sião é precedida pela descrição da vitória de Javé no êxodo, estilizada à luz da cosmogonia babilônica da luta entre deuses. A historicização do combate criador mediante sua inserção na tradição do êxodo é mais um exemplo da vitória de Javé sobre Marduque. Pouco depois, em 52,7-10, reafirma-se a realeza de Javé (em contraste com a declaração da realeza de Marduque no Enuma Elish IV,28), que está na base da saída dos exilados, exortados a não permanecerem na Babilônia (52,11-12). Em contraste com esta feliz saída, há uma breve descrição da saída de Bel e Nebo da Babilônia, derrotados por Javé, deus incomparável (46,1-7, cf. 40,18.25; 43,11; 44,6-8; 45,5-6.14.18.21-22; 46,9; textos que estão em relação polêmica com as afirmações sobre a grandeza incomparável de Marduque no Enuma Elish, e.g., VII, 14.889). A afirmação de Javé como criador do mundo e salvador de Israel (cf. 40,12.26.28; 42,5; 43,1.15; 44,24; 45,7-8.12.18; 48,12-13; 51,13.16) também pode ser vista nos termos da polêmica contra a cosmogonia babilônica, que retrata a criação do mundo como fruto de uma guerra entre deuses, vencida por Marduque ao matar Tiamate (a deusa “mar”), e que cria o mundo para que a humanidade

7 Nosso conhecimento do ritual do Akitu, a Festa do Ano Novo, é relativamente fragmentário. Para uma primeira
aproximação ao tema, v. o artigo de Tikva Frymer-Kensky, “Akitu”, em ELIADE, M. (ed.) The Encyclopedia of
Religion. Nova Iorque: Macmillan, 1987, vol. I, p. 170-172.
8 No tablete IV: “Ele falou e a aparição desapareceu. Novamente ele falou, e a aparição reapareceu. Quando os
deuses deram-se satisfeitos por Marduk ter provado a força de sua palavra, os deuses ancestrais abençoaram-no e
bradaram: MARDUK É REI!”
9 “Como ele, não tem igual na assembléia”; “Ele é ARANUNNA, o conselheiro, com seu pai EA sem igual em
seus modos soberanos, ele criou os deuses.”

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 5

passe a servir aos deuses10. Neste contexto polêmico, a descrição do von Rad
possui bem mais sentido:
... para ele, a criação é o primeiro dos milagres históricos de Javé,
testemunha a seu modo a vontade de salvação de Javé. ... O
segundo-Isaías nos fornece uma prova impressionante desta
concepção 'soteriológica' da criação: fala da mesma forma de Javé,
Criador do mundo, como de Javé, Criador de Israel. Javé é o
Criador de Israel no sentido de que chamou este povo à existência
enquanto criatura, e sobretudo porque o 'escolheu' e o 'resgatou'. [...]
Quando, num hino, atribui a Javé os predicados de Criador e de
Redentor de Israel, não faz alusão a duas atividades distintas, mas a
uma só: o acontecimento salutar que permitiu a Israel sair do Egito
(Is 44,24; 54,5).11
O sentido salvífico da criação (e sua respectiva historicização) não precisa ser
entendido a partir de uma concepção teológica moderna, como, e.g., a “história da salvação”12; pode ser percebido contextualmente na polêmica contra o sentido
“escravizador” da criação do mundo e dos seres humanos por Marduque e demais deuses babilônios. Pode-se incluir aqui, também, a afirmação de que Javé não precisa de conselheiros (40,13-14; 41,28), que contrasta com a afirmação de que Marduque é conselheiro dos deuses: “Ele é Kinma, conselheiro e líder, seu nome traz terror aos deuses, o rugido do tornado” (Tábua VII).
Neste campo semântico também devemos incluir as afirmações sobre Javé
como “deus eterno” (40,28), “deus de toda a terra” (54,5), “soberano Senhor”
(51,22), que atribuem a Javé características também atribuídas a Marduque, por
exemplo: “Um deus é maior do que todos os outros deuses, de fama mais justa,
cuja palavra de comando, é a palavra dos céus, oh Marduk, o maior de todos os
grandes deuses, honra e fama, vontade de Anu, grande no comando, palavra eterna

10 “Ele criou o homem (e a mulher) seres vivos, para trabalhar para sempre, e liberar os deuses de outras cargas”
(Tábua VI)
11 von RAD, G. op.cit., p. 231s.
12 Veja-se a discussão sobre a relação entre criação e salvação por HAAG, E. “Deus criador e Deus salvador na
profecia de Dêutero-Isaías”. In: GERSTEBNERGER, E. (org.) Deus no Antigo Testamento. São Paulo: ASTE,
1981, p. 259-290.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 6

e inalterada!” (Tábua IV). Em Isaías 40-55, a antiga e tradicional noção do deus
supremo que rege os demais deuses no conselho celestial é modificada pelas
afirmações de que somente Javé é Deus (45,5.6.18b.22; 46,9), e que ele é anterior à criação, o “primeiro e último” (43,10b; 41,4; 44,6; 48,12). Desta forma, a
redescrição “monoteísta” deve ser entendida como a resposta teológica dos judaítas à dominação imperial babilônica, legitimada pela soberania universal de Marduque sobre os deuses e, conseqüentemente, sobre toda a terra. Que Javé é o único e supremo Deus também se postula através da afirmação de que ele controla os astros celestes (40,26; 45,12), por ele mesmo criados, em clara polêmica contra a divinização dos astros celestes na teologia babilônica (e.g., Marduque é o Sol, Sin é a Lua), bem como contra a astrologia desenvolvida pelos “magos caldeus” – só de Javé é que se deve buscar conselho e direção para a vida. Por fim, deve-se notar também a relação polêmica da afirmação da unção
de Ciro (44,28-45,8)13 por Javé, que o subordinou na salvação de Israel e no
governo das nações, com a afirmação, no Cilindro de Ciro, de que foi pela mão de Marduque que o persa conquistou (isto é, “salvou”) a Babilônia: “Ele perscrutou e examinou todas as nações, buscando um rei justo que quisesse levá-lo (na procissão anual). Então, ele pronunciou o nome de Ciro, rei de Anshan” (cf. Pritchard, James, Ancient Near Eastern Texts, p. 315). Em um cilindro, ligado a Nabonido, Marduque apareceu em sonho ao rei babilônio, e o advertiu acerca da vitória de Ciro sobre os medas: “O meda, a quem mencionaste, ele, seu povo e os reis que marcham com ele, deixarão de existir. (E, de fato) quando o terceiro ano
chegou, ele (Marduque) levantou Ciro, rei de Anshan, seu jovem servo, que

13 “Javé virá proximamente; mas ele não se revelará somente a Israel, virá desta vez para uma teofania universal;
sua glória (kâbôd) será revelada a todas as nações. ... Depois que Ciro movimentou a história universal, muitas
coisas começam a vacilar e o fim está próximo. 'Minha salvação está próxima, meu socorro já vem (Is 51,6;
46,13). O braço de Javé está desnudado diante das nações (Is 52,10); coisas maravilhosas se produzirão. ... é Javé
quem o [Ciro] 'suscitou' (Is 24,2.25) [sic], e se dirige a ele usando o estilo de corte do Antigo Oriente, dizendo
que o tomou pela mão, que o acompanha como um amigo, que o chamou por seu nome e lhe deu afeição [nota
335, p. 447: Is 45,1-3; 48,14. Já se notou freqüentemente o paralelismo chocante que esta passagem e as
expressões estilizadas em linguagem da corte que descrevem a relação do Deus Marduque com Ciro no
documento chamado 'cilindro de Ciro', AOT, p. 368ss; ANET, p. 315s.].” (von RAD, 1974:234)

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 7

dispersou os exércitos do meda com o seu pequeno exército, e que capturou
Astíages, rei dos medas, e o levou como cativo”.14 Isto nos permite contrastar a
profecia com a “adivinhação”, conforme presente na polêmica teológica de Is 40-
55, e.g. em Is 41,21ss (cf. 42,8-9; 48,2-6) que contrasta a capacidade preditiva de
Javé com a incapacidade dos ídolos (outros “deuses) em anunciar, de antemão a
seus povos, o que acontecerá no seu futuro. Temática, esta, que tem a ver com a
soberania universal de Javé, em contraste com a soberania de Marduque.15
2. A redescrição de Javé vis-a-vis a tradição teológica judaico-israelita
Já von Rad destacava a relação da teologia de Is 40-55 com a tradição
profética anterior: “constatamos que o segundo-Isaías retomou as três tradições
sobre a eleição que estão na base de toda profecia (as tradições relativas ao êxodo, a Davi e a Sião), e lhes imprimiu sua marca em poemas de grande valor” (Von RAD, 1974, p. 230). Não se aceita mais a afirmação de que as tradições do êxodo, Davi e Sião sejam “tradições sobre a eleição”, nem que “estão na base de toda profecia”. Von Rad ainda menciona o uso da tradição sobre a criação (p. 231) pelo segundo-Isaías, mas destaca que essa tradição não estava presente na profecia a ele anterior. Também aqui se deve modificar o foco, não se reduzindo a relação do segundo Isaías apenas com as tradições “proféticas”. Claus Westermann, em seu comentário a Isaías 40-66, procura traçar a relação do dêutero Isaías com as tradições a partir de três categorias distintas: as tradições históricas (êxodo, Sião e Davi), as tradições proféticas (o juízo e a denúncia contra o culto sacrificial), e as

14 Citado em BLENKINSOPP, Joseph. Isaiah 40-55: a new translation with introduction and commentary. New
York: Doubleday, 2002, p. 207).
15 “O segundo-Isaías coloca efetivamente, com toda agudeza, a questão de saber quem dirige a história universal?
A resposta que dá é surpreendente: o Senhor da história é aquele que pode predizer o futuro. Ora, os deuses dos
pagãos não são capazes disso, são pois 'inexistentes'. No conflito entre Javé e os falsos deuses, a prova pela
predição é que constitui a differentia specifica. No mais, sobre o plano da história, onde se resolve este conflito,
Javé está à mercê de seu povo, dado que Israel é sua testemunha, por mais miserável que seja (Is 42,19 ... 43,9-
10).” (von RAD, 1974: 233)

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 8

tradições achadas no saltério (forma dos oráculos de salvação, o louvor
declarativo, a realeza de Javé, os salmos de lamento) – que é uma organização
mais adequada do que a de von Rad, mas ainda incapaz de categorizar
corretamente o pensamento judaico-israelita, na medida em que desconsidera
(como o fizera von Rad anteriormente) os distintos lugares sociais dessas diversas tradições.16 Outros autores e autoras, ainda, têm destacado as inter-relações do pensamento de Isaías 40-55 com a pregação do Isaías do VIII século (relação já enfatizada pela editoração do livro) e com o pensamento deuteronomista.
Assim como na discussão sobre as relações intertextuais com textos
mesopotâmicos, apenas comentarei brevemente sobre a apropriação de duas
tradições jerosolimitanas em Isaías 40-55 com vistas à posterior descrição da fé em Javé no segundo Isaías.

(1) Reino de Javé vs. reino de Davi
Um dos temas diretamente vinculados à afirmação da realeza de Javé, nas
antigas tradições de Judá, é a relação entre a realeza divina e a dinastia davídica.
Textos como II Samuel 7,1ss e Salmos 2 e 72; a ênfase na figura de Davi como
“servo de Javé”; a esperança messiânica real (cf. Is 6-9); e as afirmações sobre a
filiação divina do rei (Sl 2), são exemplos dessa relação – que não tem nada de
inusitado nas teologias políticas do Antigo Oriente, pois era moeda corrente nas
mesmas – os reis são, na terra, representantes (ou filhos) do deus supremo, ou dos deuses. O rei terreno é quem governa na terra manifestando o governo divino – ou seja, é ele quem executa na terra a justiça divina (e.g. Salmo 72) – e é, por sua vez, protegido e legitimado pelo governo divino. A importância da dinastia davídica extrapola a teologia “oficial” da corte, e se manifesta também na forma de um tipo de messianismo davidita, cujo lugar social é a crítica profética e popular à dinastia davídica regente (e.g. Is 6-9).17

16 WESTERMANN, Claus. Isaiah 40-66: a commentary. Philadelphia: Westminster Press, 1986, p.21-27.
17 Ver, também, SCHWANTES, M. “Elementos de um projeto econômico e político do messianismo de Judá.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 9

Em Isaías 40-55 porém, não é através de Davi e sua dinastia que Javé
realizará a justiça. Pelo menos três contrastes podem ser percebidos: (a) Javé
realizará sua justiça através de seu servo que, no Dêutero-Isaías é, ou um profeta
(42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 53,13-53,12), ou o próprio grupo de exilados identificadocomo Israel/Jacó (41,8.9; 42,19; 43,10; 44,1.2; 44,21.23; 45,4); (b) o Ungido de Javé e seu pastor libertador dos exilados é Ciro (44,24-45,8), um rei estrangeiro, e não Davi; e (c) as promessas a Davi (referência a II Sm 7,8-17) são transferidas a todo o povo de Javé (Is 55,3-5)18, o que corresponde também à ênfase sobre Jerusalém/Sião como o espaço da justiça divina ao invés da dinastia e do palácio real (e.g. Is 54,1-17).
Ao recusar-se a vincular o reinado de Javé à dinastia davídica, o segundo
Isaías o vincula às tradições do êxodo egípcio e das famílias abrâmicas préisraelitas (cf. 40,9-11; 52,7-12; 51,1-3 e a preferência pelo par Israel/Jacó para
significar o povo de Deus). Javé não é descrito, então, como o deus do estado
monárquico, mas redescrito como o Deus do povo, das famílias que O ouvem e
servem. Desta forma, a pregação dêutero-isaiânica retoma uma compreensão préestatal ou anti-estatal do reinado de Javé – reinado que não precisa, na terra, de um rei e seu aparato estatal-militar para se concretizar.19
(2) Jerusalém/Sião da justiça vs. Jerusalém/Sião do “sagrado”
De forma semelhante, o segundo Isaías redescreve a relação de Javé com
Sião. Nas tradições “sionistas”, Javé garante a inviolabilidade de Jerusalém/Sião,
que é o centro do cosmos e a morada eterna de Javé (e.g. Salmos 46, 48, 76 e 87).
Esta compreensão está estreitamente ligada à legitimação da dinastia davídica
brevemente comentada acima. Na oração de dedicação do Templo, atribuída a
Salomão, é afirmada a perenidade do Templo enquanto morada de Javé (I Rs 8,13),

Gênesis 49, 8-12: uma antiga voz judaíta interpretada no contexto da História da Ascensão de Davi ao Poder
(1Samuel 16 até 2Samuel 5)”. Revista de Interpretação Bíblica. Petrópolis: Vozes, 2004, vol. 48/1, p. 25-33.
18 Entre outros comentaristas, BLENKINSOPP destaca: “O autor isaiânico, portanto, por assim dizer, democratiza
a promessa a Davi, transferindo-a ao povo de Israel como um todo.” (op. cit., p. 370)
19 Ver, por exemplo, PIXLEY, Jorge. O Reino de Deus. São Paulo: Paulinas, 1986.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 10

crença reforçada na crítica ao profeta Jeremias que anunciava o juízo contra a casa e a cidade (Jr 7,4). A queda da cidade e a destruição do Templo representaram um desastre terrível para a fé judaíta:
Caiu, assim, um baluarte. Não casualidade, mas indício. Sinal da
presença de Deus. No entanto, um Deus que perdia a habitação que
escolhera para si, perdia também a força. Que significado tem esse
fato para a possibilidade de se falar desse Deus? Cito aqui trechos
de uma oração: 'que por tua ordem seja edificada a cidade divina ...
o templo seja acabado! Que por tua palavra, pois ela não muda,
possa ... completar-se a obra de minhas mãos! Que tudo o que criou
dure e subsista visivelmente até os tempos mais remotos'.20
Enquanto “a teologia de Sião” gira ao redor do eixo da sacralidade e da
liturgia sacrificial no Templo, a casa oficial da fé em Javé no estado monárquico,
no Segundo Isaías, a ênfase não passa por esse mesmo caminho da sacralidade,
mas pelo caminho da aplicação da justiça. Somente em dois versos encontramos a expressão “cidade santa” (48,2 e 52,1). No primeiro, a “cidade santa” é a fonte de legitimação da religião infiel dos seguidores de Javé responsabilizados pela
destruição da cidade e do reino de Judá. No segundo, a fala é exortativa e salvífica, convocando Jerusalém a se revestir das roupas gloriosas que Javé lhe dará em sua salvação – destaque-se que a cidade é descrita como “cativa”, implicitamente, como desnuda, ou seja, como pecadora e profanada pela invasão militar estrangeira21. Na sua redescrição de Jerusalém, as fontes textuais primárias são a crítica isaiânica (e.g. Is 1,21ss) e a de Jeremias e Sofonias (e.g. Jr 7,1ss; Sf 1,4-6; 3,1ss).
Na exaltada descrição da restauração de Jerusalém/Sião, no capítulo 54,
não se pode perder de vista que a cidade-esposa de Javé é retratada como em
ruínas, como tendo sido rejeitada pelo seu esposo por causa de seus pecados (note-

20 PERLITT, L. “Acusação e absolvição de Deus”. In: GERSTENBERGER, E. (ed.) Deus no Antigo Testamento.
São Paulo: ASTE, 1981, p. 295.
21 Não se deve perder de vista o caráter apologético destas afirmações. Um deus que não pode manter em pé a sua
cidade e sua casa, não pode ser senão um deus fraco e derrotado.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 11

se o elo entre a afirmação do repúdio da esposa com a menção a Noé, 54,6-8.9-
10)22. Especialmente digna de nota é a afirmação de que a nova Jerusalém terá
como característica a justiça, ou seja, a não-opressão (v. 14, que ecoa a crítica
profética contra Jerusalém), pois os seus habitantes serão “discípulos” de Javé, ou seja, não mais serão cegos e surdos à Torá de Javé, deficiência ética e espiritual que estava na base do juízo de Javé contra a sua cidade-esposa. Novamente, aqui, o elo entre Javé e o estado é rompido, e restabelecido o elo entre Javé e o seu povo.
A ênfase sobre Jerusalém/Sião (já indicada em 40,9-11 e espalhada pelo livro
dêutero-isaiânico) aponta para o caráter urbano do grupo que escreve o livro.
Como esposa de Javé, Jerusalém será metrópole (literalmente “cidade-mãe) de
Judá, ela será o lugar de onde Javé difundirá23 a sua justiça sobre a terra de seu
povo e sobre todas as nações.

3. Javé: deus único e incomparável: a redescrição dêutero-isaiânica
As seguintes frases afirmam que Javé é o único deus: “antes de mim
nenhum Deus foi formado e depois de mim não haverá nenhum” (43,10); “Eu, eu
sou Javé, e fora de mim não há nenhum salvador” (43,11); “Eu sou o primeiro e o último, fora de mim não há Deus” (44,6; cf. 41,4); “Eu sou Javé, e não há nenhum outro, fora de mim não há Deus” (45,5; cf. “fora de mim não há ninguém” 45,6); e “Quem proclamou isto desde os tempos antigos? Quem o anunciou desde há muito tempo? Não fui eu, Javé? Não há outro Deus fora de mim, Deus justo e salvador não existe, a não ser eu” (45,21) – frase colocada na boca das nações: “Só contigo Deus está! Fora dele não há nenhum Deus” (45,14). A expressão “fora (além) de mim” retoma o primeiro mandamento (Êx 20,1-6; Dt 5,6-9) e amplia seu

22 Note-se a conexão intertextual com Lm 1,1: “Como jaz solitária a cidade outrora populosa! Tornou-se como uma
viúva a que foi grande entre as nações.”
23 Lembremo-nos de que um dos verbos favoritos do Segundo Isaías, para se referir ao agir salvífico de Javé, é
“fazer sair”.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 12

significado ao excluir os “outros deuses”. A negação de divindade aos “outros
deuses” desempenha um papel crucial na reconstrução da identidade dos judaítas
exilados, através de sua forte tonalidade polêmica contra os deuses conquistadores dos babilônios (e dos assírios antes deles, e dos egípcios antes ainda)24. Não se deve interpretar estas afirmações a partir da categoria ocidental filosófica do monoteísmo.
Javé é o único Deus porque somente ele criou o mundo e salva o seu povo
Israel – é o agir de Deus que o caracteriza enquanto divino, não os atributos de sua natureza (como no teísmo filosófico). Como destacou Haroldo Reimer, a crença “monoteísta” em Javé precisa ser entendida no âmbito do processo histórico de formação e transformação da fé em Javé, especialmente mediante o mecanismo da sincretização: “todo esse processo deve ser entendido de acordo com as coordenadas de um sincretismo religioso, em que atribuições e funções de
determinadas divindades são transferidas a outra no mesmo compasso em que, na
base social, isto é, junto aos sujeitos religiosos, há um processo de amalgamação e inculturação das expressões religiosas.”25
A força principal da afirmação da unicidade de Javé recai sobre a crítica à
ideologia dos babilônios. Somente Javé é o deus criador, o vencedor e salvador, o
deus justo que anuncia o que fará antes de fazê-lo, o senhor da história. Para o
segundo Isaías, a descrição monolátrica de Javé não era mais suficiente para
manter a fé e a identidade do povo de Deus. Era necessário ir além, avançar para

24 “A prática de vincular uma auto-identificação da divindade com uma rejeição de reivindicações rivais - “não há
outro que possa salvar, além de mim ... ninguém pode livrar de minha mão” (ver também 44,6.8; 45,6.21) – se
assemelha à formulação atribuída à Babilônia personificada e, portanto, com toda a probabilidade, falada em
nome do deus imperial da cidade, Marduque: “Eu sou, e não há nenhum outro” (47,8.10). Entendo isto como um
dos indícios da familiaridade do autor com a ideologia religiosa do império e com o culto imperial, cujas
principais expressões são encontradas no épico Enuma Elish e no festival akitu de Ano Novo, durante o qual ele
era recitado. Diferentemente de Marduque, filho de Ea, que foi precedido pelos deuses criados em pares (Lahmu
e Lahamu; Ashar e Kishar), e sucedido por outros, Javé não tem uma genealogia e não é parte de uma teogonia
(v. 10b). Esta é uma das várias indicações, em Isaías 40-55, de um tipo de imagem especular do culto de
Marduque, por meio da qual o autor visava contrapor-se à ideologia do poder articulada nessas liturgias.”
BLENKINSOPP, Joseph. Isaiah 40-55: a new translation with introduction and commentary. New York:
Doubleday, 2002, p. 225.
25 REIMER, H. “Sobre os inícios do monoteísmo no Antigo Israel”. Fragmentos de Cultura. Goiânia: UCG, 2003,
vol. 13/5, p. 985.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 13

uma afirmação mais ousada e polêmica: somente Javé é Deus! Um passo
gigantesco dado por derrotados, sem nenhuma forma de verificação histórica – sem cidade, sem templo, sem palácio. Somente a fé e a esperança estão na base da afirmação monojavista. Em um ambiente cultural em que cada cidade possuía o seu deus, a afirmação de que há somente um deus possui implicações políticas e religiosas de largo alcance.
Crer em um só Deus demanda que todas as esperanças, dúvidas e certezas
sejam colocadas somente nele, e impede que se apele a outros deuses quando o
deus não atende as necessidades do crente. Afirmar que somente Javé é deus
dirige-se primariamente aos judaítas que dividiam a sua lealdade entre vários
deuses e deusas, de acordo com a conveniência. Crer em apenas um deus exige um tipo mais profundo de compromisso e lealdade. Ainda sob o ponto de vista da
religião, a afirmação do deus único impede todo e qualquer tipo de dualismo. A
afirmação ousada de que Javé cria a luz e as trevas, o bem e o mal (45,7), no
discurso sobre Ciro, polemiza com o dualismo explícito da religião persa,
ampliando dessa forma o alcance do monismo tradicional em Israel e Judá (cf. Am 3,6; 4,13). Isto acarreta, porém, uma incerteza para a crença. Um deus único é, também, um deus imprevisível, na medida em que não pode ser controlado pelos seus adoradores e adoradoras. Imprevisível, é também soberano e deve ser
atentamente ouvido e obedecido (a falta de ouvir e obedecer a Torá de Javé é a
principal descrição dêutero-isaiânica do pecado do povo de Javé). Acarreta esta
crença, ainda, a impossibilidade de se atribuir características fechadas de gênero à divindade. Javé não pode ser mais descrito como sendo exclusivamente
“masculino”! “O Deus único significa, entre outras coisas, que não é mais possível definir o gênero da divindade em termos exclusivos, ou fazer qualquer
diferenciação em termos de especificidade de gênero. Dêutero-Isaías pode se
aventurar a comparar o que Javé faz, com o grito do guerreiro na batalha (42,13) e

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 14

com o grito da mulher em trabalho de parto (42,14).”26
Do ponto de vista político, a afirmação da unicidade de Javé representa o
fim de toda e qualquer noção estatal e/ou imperialista da divindade. O deus único
não está vinculado a nenhum país, a nenhum palácio, a nenhum templo, a nenhum lugar. Está em todos os cantos, de forma livre e soberana. Como criador e salvador de toda a terra e de todas as nações, Javé governa com justiça, libertadoramente, estabelecendo como padrão para as relações político-econômicas a fidelidade à justiça do próprio Deus. É à luz desta afirmação que a ação redentora de Javé em favor de Israel/Jacó e Jerusalém/Sião deve ser entendida, sob risco dela ser reduzida, novamente, a uma eleição arbitrária e excludente. Como criador dos céus e da terra, Javé também cria (salva) seu povo, mas não de forma excludente, pois seu povo se tornará testemunha (43,12; 44,8; 48,20-22) da salvação de Javé para todas as nações (cf. 49,10ss; 51,4-8; 52,1-6.7-12; além dos poemas do servo de Javé). Embora Jerusalém seja o lugar privilegiado da difusão da Torá justa de Javé, não é um lugar imperial. Embora a salvação das nações esteja vinculada à de Israel, não é para fazer de Israel um império. Se Javé não é como Marduque, também sua cidade não poderá ser como a Babilônia! Javé não é um deus nacional, mas um deus pessoal27. Deus de famílias e não de países. Deus de seguidores e seguidoras, e não de instituições. Não é à toa que o nome preferido do segundo Isaías para o povo de Deus é Israel/Jacó, o pai de família que viveu vinte anos no “exílio” e conseguiu, com sua família, voltar à terra de seu pai e mãe. Para os judaítas nas colônias em terras babilônicas, a memória das vicissitudes das famílias fundadoras, acrescida da fé em Javé como o único deus, desempenharia papel crucial na reconstrução de sua identidade ameaçada.

26 BALTZER, K. Deutero-Isaiah: a commentary on Isaiah 40-55. Minneapolis: Fortress Press, 1999, p. 36.
27 Não é possível, aqui, discutir as questões sociológicas e teológicas mais amplas relativas à afirmação de que Javé
é um deus “pessoal”, “familiar”. Veja-se a discussão, por exemplo, em ALBERTZ, R. História de la religión de
Israel en tiempos del Antiguo Testamento. Madri: Trotta, 1999, 2 vols. e GERSTENBERGER, E. Theologies in
the Old Testament. Minneapolis: Fortress, 2002.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 15

Como deus único, Javé também é um deus incomparável (40,12-31; cf.
46,5; 55,6-11). É incomparável em sua liberdade étnica, pois pode chamar Ciro,
um estrangeiro que não o conhece, para ser o sujeito histórico da libertação de seu povo (41,1-5.25; 44,28-45,7; 45,12-13; 46,11; 48,14s), e pode aceitar estrangeiros em seu povo (44,5). É incomparável em sua liberdade política, pois pode democratizar a aliança com o rei Davi (Is 55,1-5), sendo o Deus que faz aliança com as pessoas necessitadas, e não com as poderosas; e é o Deus que pune o seu próprio “país” (40,1-2; 42,18-25; 50,1-3), e pune também Babilônia porque não é justa (47,1ss). É incomparável porque a sua glória não está na pompa litúrgica ou arquitetônica, mas na libertação das pessoas injustiçadas (40,3-5; 43,16-21; 45,25; 46,13; 51,9-11; 55,12-13). É incomparável porque desqualifica a palavra dos sábios e a magia dos magos caldeus (44,25; 47,12-15), fazendo da sua própria palavra a força libertadora na história (55,6ss). É incomparável porque, para salvar o seu povo, não só usa um estrangeiro, mas também um servo que liberta não pela força militar, mas pela força do testemunho, até ao clímax do martírio (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12). É incomparável porque para criar o mundo, não precisou de conselheiros nem ajudantes, e nem se envolveu em um revolta caótica, mas vê o caos desdivinizado na opressão entre povos, e faz do novo êxodo do seu povo a triunfante passagem pelas águas caóticas (45,14-19; 51,9-11).
Diante dos imensos desafios da dominação babilônica, nenhuma resposta
tímida poderia servir de base para a reconstrução da identidade do povo de Javé.
Na pregação e nos cânticos do segundo-Isaías, encontramos a mais ousada
redescrição da fé em Javé no Antigo Testamento – que reverbera até hoje entre as
pessoas que seguem a Javé e também ao Pai de Jesus Cristo. Só há um Deus e ele é incomparável. Que Deus pode se comparar àquele que, para salvar a sua criação, morre reconciliadoramente? À mesma ousadia o segundo-Isaías nos convida hoje em nossas redescrições da fé.

Faculdade Unida Teologia do Antigo Testamento 16

Referências bibliográficas

ABUSCH, T. “Marduk” em TOORN, K. E outros (eds.) Dictionary of deities and demons in the Bible.
Leiden: Brill, 1999, p. 543-549.
ARANGO, J. R. L. “Deus solidário com seu povo. O Go'el no Dêutero Isaías”. Revista de Interpretação
Bíblica latino-americana. Petrópolis: Vozes, 1994, vol. 18/2, p. 46-55.
ALBERTZ, R. História de la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento. Madri: Trotta, 1999,
2 vols.
BALTZER, K. Deutero-Isaiah: a commentary on Isaiah 40-55. Minneapolis: Fortress Press, 1999.
BLENKINSOPP, J. Isaiah 40-55: a new translation with introduction and commentary. New York:
Doubleday, 2002.
____ “The servant and the servants in Isaiah and the formation of the book”. In: BOYLES, C. C. &
EVANS, C. A. (eds.) Writing and reading the scroll of Isaiah. Studies of an interpretive tradition.
Leiden: Brill, 1997, p. 155-176.
BROYLES, C. C. “The citations of Yahweh in Isaiah 44:26-28”. In: BOYLES, C. C. & EVANS, C. A.
(eds.) Writing and reading the scroll of Isaiah. Studies of an interpretive tradition. Leiden: Brill, 1997,
p. 399-422.
BRUEGGEMANN, W. A Imaginação Profética. São Paulo: Paulinas, 1983.
CARDOSO, Ciro F. S. Antiguidade Oriental: Política e Religião. São Paulo: Contexto, 1990.
CARROLL, R. P. “Blindsight and the Vision Thing: Blindness and insight in the book of Isaiah”. In:
BOYLES, C. C. & EVANS, C. A. (eds.) Writing and reading the scroll of Isaiah. Studies of an
interpretive tradition. Leiden: Brill, 1997, p. 79-94.
COLLI, G. A. “O prólogo de Dt Is: Is 40,1-11 Dinâmica profética através da memória do êxodo”. Via
Teológica. Curitiba: FTBP, 2005, n. 11, p. 73-92.
CONRAD, E. W. Reading Isaiah. Minneapolis: Fortress Press, 1991.
CROATTO, J. S. Isaías - A palavra profética e sua releitura hermenêutica. 40-55 A Libertação é
Possível. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1998.
____ “A figura do rei na estrutura e mensagem do livro dos Salmos”. Revista de Interpretação Bíblica
latino-americana. Petrópolis: Vozes, 2003, vol. 45/2, p. 38-62.
____ “O Dêutero-Isaías, profeta da utopia”. Revista de Interpretação Bíblica latino-americana.
Petrópolis: Vozes, 1996, vol. 24/2, p. 38-43.
DUHM, B. Das Buch Jesaja. Goettingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1968.
ELLIGER, K. Deuterojesaja: 1. Teilband, Jesaja 40,1-45,7. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag,
1978.
FOHRER, G. Das Buch Jesaja. Zuerich: Zwingli-Verlag, 1960-1964. 3 vols.
FRETHEIM. T. E. The Suffering of God. An Old Testament perspective. Philadelphia: Fortress, 1994.
FRYMER-KENSKY, T. “Akitu”, em ELIADE, M. (ed.) The Encyclopedia of Religion. Nova Iorque:
Macmillan, 1987, vol. I, p. 170-172.
GALLAZZI, S. “O Senhor reinará eternamente – uma contestação à teocracia sadocita”. Revista de
Interpretação Bíblica latino-americana. Petrópolis: Vozes, 2003, vol. 45/2, p. 63-72.
GARELLI, Paul & NIKIPROWETZKY, V. O oriente próximo asiático. Impérios mesopotâmicos-Israel.
São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1982.
GERSTENBERGER, E. “Deus Libertador”. In: GERSTENBERGER, E. (org.) Deus no Antigo
Testamento. São Paulo: ASTE, 1981, p. 9-30.
____ Theologies in the Old Testament. Minneapolis: Fortress, 2002.
HAAG, E. “Deus criador e Deus salvador na profecia de Dêutero-Isaías”. In: GERSTENBERGER, E.
(org.) Deus no Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1981, p. 259-290.
HANSON, P. D. The people called. The growth of community in the Bible. San Francisco: Harper &
Row, 1986.
HERMISSON, H.-G. Deuterojesaja: 2. Teilband, Jesaja 45,8-49,13. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener
Verlag, 2003.
HOUSE, P. R. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005.
KAISER, W. C. Jr. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1988.
KNIGHT, G. A. F. Deutero-Isaiah: a theological commentary on Isaiah 40-55. New York: Abingdon,
1965.
KRAUS, H. J. Das Evangelium der unbekannten Propheten: Jesaja 40-66. Neukirchen-Vluyn:
Neukirchener Verlag, 1990.
KUNTZ, J. K. ”The Form, Location, and Function of Rhetorical Questions in Deutero-Isaiah”. In:
BOYLES, C. C. & EVANS, C. A. (eds.) Writing and reading the scroll of Isaiah. Studies of an
interpretive tradition. Leiden: Brill, 1997, p. 121-142.
McKENZIE, J. L. Second Isaiah: Introduction, translation, and notes. Garden City: Doubleday, 1968.
MELUGIN, R. F. The formation of Isaiah 40-55. Berlin: Walter de Gruyter, 1976.
METTINGER, T. N. D. “In search of the hidden structure: YHWH as King in Isaiah 40-55”. In:
BOYLES, C. C. & EVANS, C. A. (eds.) Writing and reading the scroll of Isaiah. Studies of an
interpretive tradition. Leiden: Brill, 1997, p. 143-154.
ORLINSKY, H. M. Studies on the second part of the book of Isaiah: the so-called servant of the Lord and
suffering servant in second Isaiah. Leiden: E. J. Brill, 1967.
PERLITT, L. “Acusação e absolvição de Deus”. In: GERSTENBERGER, E. (org.) Deus no Antigo
Testamento. São Paulo: ASTE, 1981, p. 291-312.
PIXLEY, Jorge. O Reino de Deus. São Paulo: Paulinas, 1986.
REIMER, H. “Sobre os inícios do monoteísmo no Antigo Israel”. Fragmentos de Cultura. Goiânia: UCG,
2003, vol. 13/5, p. 967-987.
REVENTLOW, H. G. “Righteousness as Order of the World: Some remarks toward a Programme”. In:
REVENTLOW, H. G. & HOFFMAN, Y. (eds.) Justice and Righteousness. Biblical Themes and their
Influence. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1992, p. 163-172.
RIDERBOS, J. Isaías. Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1992.
RORTY, Richard. “Para emancipar a nossa cultura (Por um secularismo romântico)”. In: DE SOUZA,
José C. (org.) Filosofia, racionalidade, democracia. Os debates Rorty & Habermas. São Paulo: Unesp,
2005, p. 85-100.
SCHÖKEL, L. A. & SICRE, J. L. Profetas, vol. I – Isaías e Jeremias. São Paulo: Paulus, 1988.
SCHWANTES, M. “Elementos de um projeto econômico e político do messianismo de Judá. Gênesis 49, 8-12: uma
antiga voz judaíta interpretada no contexto da História da Ascensão de Davi ao Poder (1Samuel 16 até 2Samuel
5)”. Revista de Interpretação Bíblica. Petrópolis: Vozes, 2004, vol. 48/1, p. 25-33.
SCHWANTES, M. & MESTERS, C. Profetas: saudades e esperança. São Leopoldo: CEBI, 1990.
SICRE, J. L. Profetismo em Israel. O Profeta, os profetas, a mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996.
Von RAD, G. Teologia do Antigo Testamento, vol. I, São Paulo, ASTE, 1974.
WATTS, J. D. W. Isaiah 34-66. Waco: Word Books, 1987.
WESTERMANN, C. Isaiah 40-66: a commentary. Philadelphia: Westminster Press, 1986.
WESTERMANN, C. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Paulus, 1994.
WHYBRAY, R. N. Isaiah 40-66. Grand Rapids: Eerdmans, 1981.
WILSON, R. R. Profecia e Sociedade no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 1993.

Apêndice

Tábua IV do Enuma Elish
(http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html)
Foi feito um trono para Marduk, e ele ali se sentou, face a face com seus ancestrais para receber o
governo.
- Um deus é maior do que todos os outros deuses, de fama mais justa, cuja palavra de comando, é a
palavra dos céus, oh Marduk, o maior de todos os grandes deuses, honra e fama, vontade de Anu, grande
no comando, palavra eterna e inalterada!
Onde houver ação, Marduk é o primeiro a agir, Onde houver governo, Marduk é o primeiro a governar,
para dar glória a uns, para humilhar outros, a prerrogativa do deus, Verdade absoluta, vontade sem limite,
que deus ousará questioná-lo? Nos seus locais mais lindos destes mesmos deuses, um lugar é sempre
guardado para Marduk, nosso vingador.
Nós te chamamos aqui para receber o cetro, para fazer de ti rei de todo o universo. Quando te sentares no
Sínodo, serás o árbitro; na batalha, tuas armas esmagarão o inimigo.
- Deus, salva a vida de qualquer deus que se voltar para ti; mas para aqueles deuses que apreenderem o
mal, que a vida destes deuses lhes seja tirada.'
Os deuses ancestrais conjuraram então um tipo de aparição na frente deles, fazendo com que este ser
aparecesse frente a Marduk, para dizer ao jovem deus, o primogênito:
- Deus, tua palavra entre os deuses arbitra, destrói e cria; fale então e esta aparição irá desaparecer. Fale
novamente, e a aparição irá reaparecer.
Ele falou e a aparição desapareceu. Novamente ele falou, e a aparição reapareceu. Quando os deuses
deram-se satisfeitos por Marduk ter provado a força de sua palavra, os deuses ancestrais abençoaram-no e
bradaram:
- MARDUK É REI!
Os deuses ancestrais vestiram Marduk com as vestimentas reais, o cetro e o trono a ele foram dados, bem
como armas de guerra sem igual como um escudo contra adversários.
Parta agora. Tire a vida de Tiamat, e que os ventos carreguem seu sangue até os limites mais secretos do
mundo!
Os deuses antigos mostraram a Bel o que ele teria de ser e o que deveria fazer, sempre através da
conquista, sempre através de [grandes] vitórias;
Então Marduk fez uma reverência e para marcar aquela que seria sua arma, sua e somente sua, ele
colocou uma flecha contra o arco, na mão direita e segurou a clava e levantou-a para o alto, arco e flecha
pendurados ao ombro, sendo que relâmpagos se projetavam à sua frente, ele mesmo tornando-se numa
figura incandescente.
Ele fez uma rede, uma isca para Tiamat; os ventos, em suas posições nas quatro direções, seguraram tal
rede, o vento sul, o vento norte, o vento leste e o vento oeste, de forma que parte alguma de Tiamat
pudesse escapar.
Com a rede, o presente de Anu, ao lado, ele se ergueu.
IMHULLU
O vento atroz, a tempestade, o redemoinho, o furacão, o vento dos quatro, o vento dos sete, e o túmido, o
pior de todos.
Todos os sete ventos foram criados e liberados para assaltar as entranhas de Tiamat. Os ventos se
postaram atrás de Marduk. Então o tornado
ABUBA
Seu último grande aliado, o sinal para para o assalto, ele levantou.
Marduk montou na tempestade, sua carruagem terrível ...
Ele colocou à sua direita o Batedor, o melhor em fazer confusões; à sua esquerda esta a Fúria da Batalha,
que aniquila o mais bravo; adornou sua armadura com terror, uma auréola de espanto; com uma palavra
mágica murmurada entre dentes, uma planta que cura foi pressionada na palma de sua mão. Assim
armado, ele partiu.
Ele seguiu na direção do som crescente da ira de Tiamat, com todos os deuses a seu lado, e os pais de
todos os deuses. Desta forma, Marduk se aproximou de Tiamat.
Ele a observou examinar as profundezas, ele testou o plano de Kingu, o consorte de Tiamat, mas assim
que Kingu viu o jovem deus, ele começou a tremer, começou a sentir medo, e ao ver os deuses que
enchiam as fileiras atrás de Marduk, quando Kingu viu o bravo jovem deus, seus olhos repentinamente se
anuviaram.
Mas Tiamat, sem virar seu pescoço, cuspiu em desafio:
Arrogante, pensas que és o maioral? Os deuses estão saindo agora de seus esconderijos para habitar o teu.
Então o jovem deus levantou um furacão, a grande arma que ele lançou com palavras e terrível fúria:
- Por que estás te insurgindo, teu orgulho criando um abismo, teu coração escolhendo facções, para que
teus filhos rejeitem seus pais? Mãe de todos nós, por que tens de ser a mãe da guerra?
Fizeste de Kingu, aquele inepto, teu esposo! Deste a ele a posição de Anu, não que ele merecesse, porém.
Tens abusado dos deuses, meus ancestrais, em amarga malevolência ameaças Anshar, o rei de todos os
deuses. Tens incentivado as forças para batalha, preparado as armas de guerra. Levante-se portanto
sozinha, e lutaremos contra ti, e eu e eu somente contigo irei lutar.
Quando Tiamat ouviu Marduk, com seus nervos à flor da pele, ela ficou enraivecida e gritou para o alto,
suas pernas estremeceram, ela começou a fazer encantos e maldições, enquanto os deuses da guerra
afiavam as suas armas.
Então eles encontraram Marduk, o mais arguto dos deuses, e Tiamat engalfinhou-se com ele num
combate corpo a corpo.
Marduk lançou sua rede para prender Tiamat, e o implacável vento Imhullu veio por trás e bateu na face
de Tiamat. Quando ela abriu a boca para engolir Marduk, o jovem deus empurrou Inhullu para dentro
dela, de modo que a boca não se fechasse e que o vento rugisse na barriga da mãe original de todos os
deuses, para que sua carcaça explodisse, entumescida. Tiamat escancarou sua boca, e então Marduk
disparou a flecha que lhe cortou as entranhas, que atingiu seu estômago e útero da criação.
Agora que Marduk havia conquistado Tiamat, ele terminou com a vida dela. Ele a atirou ao chão, subindo
em sua carcaça. A líder da insurreição estava morta, seu corpo despedaçado, seu bando disperso.
Aqueles deuses que haviam marchado ao lado dela agora estavam cheios de terror. Para salvar suas
próprias vidas, se pudessem, voltaram suas costas ao perigo. Mas então eles foram rodeados num círculo,
do qual não podiam escapar.
Marduk esmagou as armas dos deuses rebeldes, e jogou-as com eles na sua rede. Lá, os deuses rebeldes
choraram e se esconderam pelos cantos, sofrendo a ira do deus.
Aqueles que resistiram, foram colocados em grilhões, que continham onze monstros, estes monstros os
filhos malditos de Tiamat, com todos os seus armamentos assassinos. O bando demoníaco da grande
deusa que havia marchado à frente dela, Marduk levou ao solo, de joelhos.
Mas Kingu, o usurpador, o chefe de todos eles, Marduk prendeu e o matou, tomando as Tábuas do
Destino, usurpadas sem direito por Kingu, e selando-as com seu selo, Marduk colocou-as em seu peito.
Quando tudo isto tinha sido feito, os adversários derrotados, o inimigo orgulhoso humilhado, quando o
triunfo de Anshar havia sido alcançado sobre o inimigo, e a vontade de Nudimmud satisfeita, então o
bravo Marduk apertou as cordas dos prisioneiros.
Ele voltou para onde Tiamat jazia acorrentada, ele abriu as pernas da deusa e espatifou seu crânio (pois a
clava não tinha misericórdia), ele cortou as artérias e o sangue dela jorrou na direção do Vento Norte para
os confins desconhecidos do Mundo Físico.
Quando os deuses viram tudo isto, eles riram alto e mandaram presentes a Marduk. Eles mandaram ao
jovem herói tributos agradecidos.
O jovem deus descansou. Ele olhou para o corpo amplo de Tiamat, ponderando sobre como usá-lo, o que
criar da carcaça morta. Ele abriu o corpo de Tiamat em dois, com a primeira metade, a superior, ele
construiu o arco dos céus, ele empurrou para baixo uma barra e fez uma sentinela para as águas, de forma
que estas jamais pudessem escapar.
Ele cruzou os céus para contemplar a infinita distância; ele se postou sobre apsu, aquele apsu construído
por Nudimmud sobre o antigo abismo que ele agora examinava, medindo-o e demarcando-o.
Ele estendeu a imensidão do firmamento, ele fez Esharra, o Grande Palácio, à sua imagem terrena, e Anu,
Enlil e Ea tiveram suas estações certas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails