quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A imprevisibilidade fiel de Javé

Um eixo da Teologia do Antigo Testamento

Introdução

Há um consenso entre estudiosos do Antigo Testamento no tocante ao
fato de que a Teologia do Antigo Testamento não possui um centro, mas
vários eixos de significado que articulam a pluralidade do testemunho de
Israel ao agir e falar de seu Deus. Na teologia latino-americana recente, os
eixos do êxodo e do reinado de Javé têm sido bastante explorados e
discutidos, com resultados importantes para a compreensão teológica do
Antigo Testamento e seus vínculos com a nossa práxis cristã contemporânea.
Esses eixos destacam primariamente as dimensões social e política da fé em
Javé, dimensões importantes e relevantes para a fé cristã na América Latina.
A partir desses eixos, desenvolveu-se também toda uma reflexão e renovação
nas práticas da espiritualidade e das relações pessoais.
Um terceiro eixo da teologia do Antigo Testamento é o da
imprevisibilidade fiel de Javé (e, conseqüentemente, sua fidelidade
imprevisível). Este eixo visa destacar a dimensão pessoal-relacional do
testemunho sobre Javé no Antigo Testamento, mas não em detrimento das
dimensões social e política. A pessoa e as relações que ela estabelece
ocorrem em contextos sócio-políticos específicos, em situações concretas
que, tanto moldam como são moldadas pelas ações e relações pessoais.
A escolha também aponta para um dado fundamental da teologia do
Antigo Testamento que é a centralidade de Javé, seu agir e seu caráter. O
tema primeiro de uma teologia bíblica do AT é Javé, e ao redor desse tema
outros poderão ser tratados de forma mais adequada. O agir libertador de
Javé (êxodo), o agir transformador de Javé (crítica profética), seu agir
soberano (reinado de Javé) são dimensões que, juntamente com o agir
pessoal de Javé (imprevisibilidade fiel), constituem os parâmetros de uma
teologia do AT relevante para a práxis cristã contemporânea. Como não é
possível abordar todos os textos e temas mais importantes, o nosso enfoque
recairá sobre a imprevisibilidade fiel de Javé manifesta no quase sacrifício de
Isaque – em Gênesis 22,1-19 e algumas de suas releituras no próprio Antigo
Testamento e no Judaísmo antigo.
Nesta escolha, está presente a influência da chamada pósmodernidade,
ou hiper-modernidade (o termo preferido de Giles Lipovetski),
que recoloca a dimensão pessoal no centro das questões intelectuais,
políticas e econômicas. Uma leitura crítica na pós-modernidade, entretanto,
não nos permite isolar a dimensão pessoal das lutas políticas e sociais – algo
que também no AT não se podia fazer. Por fim, a escolha também visa
destacar a dimensão litúrgica do pensar e fazer teológico em conexão com a
práxis missional do povo de Deus. Um dos hinos mais cantados no mundo
evangélico contemporâneo tem como seu tema a fidelidade de Deus:

Tu és fiel!
Tu és fiel, Senhor, meu Pai celeste;
Pleno poder a teus filhos dará
Nunca mudaste, Tu nunca faltaste
Tal como eras, Tu sempre serás
Tu és fiel Senhor, Tu és fiel Senhor,
Dias após dia,
Com bênçãos sem fim
Tua mercê me sustenta
E me guarda
Tu és fiel Senhor, Fiel a mim!
Flores e frutos, montanhas e mares,
Sol, lua, estrelas, no céu a brilhar!
Tudo criaste, na terra e nos ares
Todo universo vem, pois, Te louvar
Pleno perdão Tu dás, paz, segurança
Cada momento me guias, Senhor
E no porvir, oh! que doce esperança
Desfrutarei do teu rico favor!

Animados pelo louvor, passemos ao estudo de nosso tema.
Pensando sobre fidelidade e imprevisibilidade
“... pelo que também lhes dei estatutos que não eram bons, e normas
pelas quais não alcançariam a vida; e permiti que se contaminassem com
seus dons sacrificiais, como quando queimavam a fogo tudo o que abre a
madre, para confundi-los a fim de que soubessem que eu sou Javé” (Ez
20,25-26). Como pode o profeta afirmar, em nome de Javé, que o Deus de
Israel confundiu seu povo? Se Deus assim confundiu o seu povo, exatamente
por meio da sua lei, como confiar em Javé? Como prever as ações e reações
de Javé? Solto, assim, o texto é por demais chocante. E mesmo quando
recolocado em seu contexto, ainda mantém a sua estranheza. Javé não é um
deus previsível! Fiel, sim. Previsível, não!
Este, certamente, não é um dos textos mais apreciados do Antigo
Testamento, nem um dos que servem de base para a articulação teológica e
práxica. Entretanto, em seu caráter marginal, periférico, aponta para um tema
central de toda a Escritura (Antigo e Novo Testamentos), o sacrifício de
primogênitos. Este, por sua vez, é o tema concreto a partir do qual
desenvolverei a concepção da imprevisibilidade fiel e fidelidade imprevisível
de Javé. Percorremos um caminho sinuoso ao longo do cânon bíblico e da
história do povo de Deus, iniciando com a morte simbólica do filho da
promessa (Gn 22,1-19), culminando na morte real do filho prometido (Jesus
crucificado). Ao longo desse caminho, os vínculos paradoxais entre a
fidelidade e a imprevisibilidade de Javé mostrar-se-ão e orientarão nosso
pensamento e nossa práxis.

1. Fidelidade

Fiel é a pessoa em quem se pode confiar, de quem se pode depender
quando necessário. A fidelidade é a permanência, em uma pessoa, das ações
e dos valores que permitem a ela, e aquelas com quem ela se relaciona, se
re-conhecer e ser re-conhecida. A fidelidade é a permanência na mudança, no
devir constante da construção e reconstrução da identidade pessoal, social,
cultural, política, religiosa. A fidelidade é a marca dos relacionamentos
confiáveis, que dão segurança, estabilidade em meio à incerteza e
imprevisibilidade da vida. Segundo Sponville, a fidelidade é a virtude da
memória: “É este o dever da memória: piedade e gratidão pelo passado. O
duro dever, o exigente dever, o imprescritível dever de ser fiel!”1 E se
fidelidade é o dever da memória, reconhecemos a fidelidade de Javé em sua
memória: pois Javé se lembra de seus compromissos, mas se esquece dos
pecados de seu povo! Memória que não é só re-viver o passado, mas também
re-significá-lo, transformando-o no presente e futuro.
Fidelidade é virtude relacional, e a sua validade depende do objeto de
sua atração: "a fidelidade só deve dirigir-se ao que vale, e proporcionalmente
– se ouso dizer, já que se trata de grandezas por natureza não-quantificáveis
– ao valor do que vale. Fidelidade primeiro ao sofrimento, à coragem
desinteressada, ao amor...”2 Embora não se referindo a Deus, o texto de
Sponville é fiel ao caráter de Javé: deus fiel ao seu povo que sofre (Ele é o
Deus que ouve o clamor), fiel à salvação de seu povo (desce e liberta
corajosamente se solidarizando com o povo que sofre), fiel à aliança que
estabelece com os seus (hesed divina, amor misericordioso e fiel que
sustenta a relação familiar de Javé com seu povo).
Em meio às vicissitudes da história, Javé permanece fiel, e porque Ele
é fiel, também "o justo viverá por sua fidelidade” (Hc 2,4). Javé é fiel sim, mas
não previsível. Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, os
pensamentos de Javé não são os nossos pensamentos (Is 55,8), por isso
somos incapazes de capturar a Sua fidelidade e domesticar Javé conforme
nossa imagem e semelhança. No entanto, a fidelidade de Javé não é
sinônimo de previsibilidade. Javé é imprevisivelmente fiel: teimoso, se
preferirmos um adjetivo menos polido; zeloso, se escolhermos um adjetivo
extraído das Escrituras. O povo de Israel celebrava a fidelidade de Javé, mas
vez após vez, foi confundido por Javé para aprender que não poderia
controlar o seu deus como faziam outros povos do Antigo Oriente. Para
aprender que somente Javé é Deus, somente Ele mesmo é Javé – deus e não
ser humano.

2. Imprevisibilidade

A imprevisibilidade de Javé é a salvaguarda de sua liberdade, é a
proteção contra a idolatração de Javé, sua redução a um mero gênio da
lâmpada, a um mero guardião de interesses pessoais ou nacionais. Houve
quem tentasse aprisionar Javé em uma lógica sapiencial duvidosa, contra a
qual um livro como o de Jó se insurgiu. Afinal de contas, quem foi o
conselheiro de Javé na criação do mundo? Como prever as ações de alguém
que é tão sublime e exaltado? De um deus que se mantém oculto, mesmo
quando revelado (Is 45,15)? O mistério é característico de Javé, que não age
sem revelar seus segredos aos seus servos (Am 3,7), e que tornou
plenamente manifesto o mistério da Sua graça fiel em Jesus Cristo.
Javé é imprevisível, mas não arbitrário. Fielmente imprevisível, a sua
liberdade não O move de Seus propósitos amorosos, de Seus compromissos
solenes. Fidelidade imprevisível, lembrada após o dilúvio, e simbolizada pelo
arco da aliança, na bela linguagem mitopoética de Gn 9,8-19.
Imprevisibilidade fiel, daquele que jamais se esquece de seu amor, renovando
a cada manhã a sua misericórdia, a sua solidariedade para com as pessoas
que sofrem (Lm 3,22-23), pois "grande é a tua fidelidade”!
Imprevisível, mas não volúvel. Javé não troca de amores como quem
troca de roupa a cada novo dia. Imprevisivelmente fiel, Javé é amante
constante, jamais se afastando de quem dEle precisa. Amante fiel de toda a
sua criação, Javé não se retira, não se retrai, não a abandona à sua própria
sorte. Amante fiel de toda a humanidade que clama, Javé se apegou a Israel,
a ele se afeiçoou, por causa de Abraão, e de Abraão se afeiçoou por causa de
toda a humanidade (cf. Dt 7,7-11; Gn 12,1ss). Amante fiel, Javé enviou seu
filho amado ao mundo ...
Imprevisível como a vida, imprevisível como o cosmos. Imprevisível
como Ele mesmo, Javé é fiel e nos acolhe em sua família, em seu círculo de
amizades, de relacionamentos. Imprevisível, Javé permanece fiel a toda a
criação. Javé, acima de tudo, permanece fiel a Si mesmo. Amante e amigo, a
fidelidade de Javé é imprevisivelmente constante e firme. Imprevisivelmente
fiel, o compromisso solidário de Javé se renova a cada instante, renovando
conjuntamente toda a sua criação (cf. Is 43,19). Fielmente imprevisível, Javé
jamais se rende à mesmice, ao marasmo, ao tradicionalismo, à paralisia do
próprio medo. Fielmente imprevisível, Javé se faz notar por sua coragem de
viver entre nós, de habitar em Sua criação, de descer para nos fazer subir (cf.
Êx 3,6-10).

3. Construindo uma noção bíblica da fidelidade imprevisível de Javé

Acima, estudamos as noções de fidelidade e imprevisibilidade em nossa
cultura em diálogo com aspectos da cultura vétero-testamentária. Neste
tópico, ofereço alguns textos bíblicos para estimular você a construir a sua
própria compreensão da fidelidade imprevisível de Javé, sua imprevisibilidade
fiel.

3.1. O vocabulário vétero-testamentário da fidelidade de Javé
Em um dicionário de hebraico, você encontrará basicamente os
vocábulos acima, no quadro, que pertencem à raiz verbal !m;a.' Analisando o
uso deste vocabulário no Antigo Testamento, nota-se que o AT dá prioridade
ao uso dos verbos para caracterizar Javé. De fato, na cultura hebraica antiga,
a maior parte da fala a respeito de Deus era caracterizada por verbos de ação
e não pode adjetivos, substantivos ou por orações nominais. Boa parte das
teologias bíblicas escritas no mundo ocidental, entretanto, constrói seus
conceitos teológicos de forma mais típica de nossas culturas – ou seja, dando
preferência a orações nominais e ao uso de adjetivos e substantivos para falar
sobre Deus. Repare como até as definições do léxico, no quadro acima, são
mais ocidentais – por exemplo: ser fiel ao invés de agir de modo fiel. Reflita
sobre esta característica lingüística ao elaborar a sua própria noção da
fidelidade de Javé.
3.2. Confessando a fé em Javé que age fielmente
A fala sobre a fidelidade de Javé, no AT, se encontra principalmente

!m;a' ('¹man) confirmar, manter, sustentar (Qal); estar estabelecido,
firme, ser fiel (Nifal); ter certeza, confiar, crer (Hifil). !m,ao ('oemen)
fidelidade. !mea' ('¹m¢n) verdadeiramente, amém !M'a' ('omm¹n) firme
!muae ('¢m¥n) fiel, confiável hn"Wma/ ('§mûnâ) firmeza, fidelidade, segurança
hn"m.a' ('omnâ) II, verdadeiramente hn"m'a] ('¦m¹nâ) fé, certeza, segurança
~n"m.au ('¥mn¹m) verdadeiramente, de fato ~n"m.a' ('omn¹m)
verdadeiramente tm,a/ ('§met) firmeza, verdade !wOma' ('¹môn) II, artífice,
arquiteto.

em hinos, salmos de lamento, de ações de graças, e em declarações de fé.
Uma dessas declarações, que recebeu várias formas na história véterotestamentária,
é: "Saberás, portanto, que Javé teu Deus é o único Deus, o
Deus fiel (particípio Nifal do verbo !m;a)' , que mantém a aliança e o amor
(ds,x,h;w) por mil gerações, em favor daqueles que o amam e observam os
seus mandamentos; mas é também o que retribui pessoalmente aos que o
odeiam; faz com que pereça sem demora o que o odeia, retribuindo-lhe
pessoalmente” (Dt 7,9-10); ou "Javé, Javé. Deus de ternura e de piedade,
lento para a cólera, rico em graça e fidelidade (tm,a/w< ds,x,-br;w>); que guarda
sua graça a milhares, tolera a falta, a transgressão e o pecado, mas a
ninguém deixa impune e castiga a falta dos pais nos filhos, e os filhos dos
seus filhos, até a terceira e a quarta geração” (Êx 34,6-7); ou "Tu Senhor,
Deus de piedade e compaixão, lento para a cólera, cheio de amor e fidelidade
(tm,a/w< ds,x,-br;w>)” (Sl 86,15).
Comentando Ex 34,6-7, Brueggemann afirma: "O que nos ocupa é o
efeito cumulativo de todos estes termos juntos, que indicam a intensa
solidariedade de Javé e seu compromisso com aquelas pessoas a quem Ele
está ligado. Os adjetivos generalizantes asseveram, com base nas sentenças
verbais de testemunho tais como Salmo 136, que a vida de Javé com Israel é
marcada por uma lealdade fundamental, inalienável. A vida de Israel, neste
ponto axial de risco em Ex 34, é agora garantida pela afirmação, dos próprios
lábios de Javé, que Javé se mantém em completa fidelidade a Israel, mesmo
entre aqueles que praticam 'iniqüidade, transgressão e pecado'.”3
3.3. A fidelidade imprevisível de Javé
A palavra hn"Wma/ é, muitas vezes, traduzida pelo termo verdade, como
no Salmo 146,6: "Ele mantém para sempre a verdade/fidelidade” (cf. Sl 25,10;
40,12; 57,4; 85,11; 89,15). Fiel, Javé é verdadeiro, pelo que também se fala
de que a lei do Senhor é fiel, que os seus testemunhos são fiéis e verdadeiros
(Sl 19; Sl 119). Agindo fielmente, Deus também orienta seu povo de forma
confiável, segura, verdadeira. Por isso, um texto como Ez 20,25-26 se
sobressai. "A idéia chocante de que Deus engana aqueles que o irritam com
seus pecados, pelos quais Ele então os destrói, já aparecera em 14,9 (o
profeta enganado); pelo que se prova o erro da moderna tradução evasiva
para horrorizá-los. A noção presente em Ezequiel é basicamente a mesma
presente nos textos que falam do endurecimento do coração de Faraó para
que a sua ruína se tornasse uma lição concreta (Ex 9,16; 10,2); ou a presente
na ordem a Isaías para embotar seus ouvintes (Is 6,9ss); ou a presente na
queixa em Is 63,17 (cf., tb, I Rs 18,36b)”4.


1 SPONVILLE, A. C. “Fidelidade”, http://www.scribd.com/doc/6986981/Andre-Comtesponville-Pequeno-
Tratado-Das-Grande-Virtudes-03. Acesso em 12.11.2007
2 Idem.
3 BRUEGGEMANN, W. Theology of the Old Testament. Minneapolis: Fortress Press, 1997, p. 217
4 GREENBERG, M. Ezekiel 1-20. Nova Iorque: Doubleday, 1983, p. 369.

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