Chaves Teológicas da Missão do Povo de Deus
por Júlio P. T. Zabatiero
A missão do povo de Deus, em resposta ao agir de Deus no mundo, é
multidimensional e integral, conforme se descreve nas palavras do lema
evangélico: “todo o Evangelho, para o ser humano como um todo, a todo
o mundo, para todas as pessoas.” Muitas são as atividades ministeriais
que compõem a missão do povo de Deus, e é necessário que tenhamos
critérios teológicos sólidos que nos permitam definir prioridades e estabelecer hierarquizações dos ministérios da missão. O propósito deste estudo é refletir sobre dois critérios teológicos presentes no Antigo Testamento, que podem nos ajudar a organizar a atividade missionária da Igreja.
1. A benignidade de Javé e a libertação humana
Na reflexão teológica latino-americana, o êxodo é uma das chaves da
leitura do Antigo Testamento, e um dos eixos da sua teologia. Certamente “não foram as comunidades latino-americanas que descobriram a centralidade do êxodo. Esta é uma conquista da teologia bíblica internacional” (SCHWANTES, M. “Teologia Bíblica junto ao povo”in Teologia do Povo, no. 3 da revista Estudos da Religião, CEPGCR, São Bernardo do Campo, p. 51). O que caracteriza a teologia latino-americana em sua apropriação do êxodo é que o mesmo é lido realistica e conflitivamente, ou seja, é lido em sua concreticidade de luta de um povo oprimido pela sua libertação. Esta é a novidade fundamental da teologia latinoamericana (seria melhor dizer teologias latino-americanas): o êxodo é um evento histórico, social, concreto e deve ser lido como tal, não podendo ser espiritualizado ou mesmo reduzido a uma função tipológica dentro do “drama histórico da salvação”. Ler o êxodo historicamente significa lê-lo como evento libertador de escravos, de pessoas oprimidas por um sistema político injusto.
A questão em jogo aqui não é semântica ou meramente teórica. Deriva,
sim, da práxis missionária de inúmeras comunidades cristãs latinoamericanas. Em um continente pobre e dependente, redescobre-se a dignidade humana no relato dos hebreus escravizados no Egito que, sob a poderosa mão de Javé, são libertados para se tornarem povo de
Deus, um povo agente histórico de transformações sonhadas pelo próprio Deus. Esta conjunção do relato bíblico com a práxis missionária de comunidades cristãs latino-americanas sugere uma nova perspectiva
para a construção da teologia da missão a partir do Antigo Testamento.
Perspectiva dominada pela noção e experiência da liberdade divina e da
libertação humana. Quais são os aspectos teológicos do êxodo que podem servir de critérios para a nossa atuação missionária?
1.1. Javé é um Deus milagrosamente ativo nas lutas humanas por vida e
liberdade (Êx capítulos 13 a 15). A linguagem do milagre é típica do
campesinato israelita da época inicial da ocupação de Canaã. Camponeses
hebreus sem exército profissional lutavam contra as cidadesestado
cananéias com grande desvantagem, e assim, dependiam de
seu Deus e atribuíam a Javé a vitória em suas batalhas (por exemplo,
Juízes capítulos 4-5). Nesses relatos nota-se que o milagre de Javé não
é exibicionista, não visa estabelecer a glória do seu autor, mas realizase
a favor dos fracos, contra os poderosos. Como tal, é celebrado pelo
povo de Deus com hinos de louvor. O milagre estimula a festividade, o
culto, a celebração. O milagre libertador estimula a fé e a gratidão cantadas pelo povo que experimenta o poder de Deus (Êx 15 e Jz 5);
1.2. Javé é o Deus de hebreus A palavra hebreu, originariamente, não
indica um grupo étnico, mas um grupo social. Hebreu é o marginalizado
pelo poder político-econômico, somente bem tarde na história de Israel é
que o termo hebreu veio a ser usado como termo étnico. No livro do Êxodo, e somente nele, Javé é chamado de Deus dos hebreus (3:18; 5:3;
7:16; 9:1,13; 10:3), ou seja, Deus dos escravos oprimidos pelo Egito. Em
muitas referências ao povo de Deus, o termo hebreu é usado quando se
quer destacar a fragilidade, marginalização ou sofrimento do povo (I Sm
4:6,9; 13:13,19; 14:11,21; 29:3; Gn 14:13; 39:14; 40:15; 43:32; Dt 15:12;
Jr 34:9). Javé, antes de ser Deus de uma etnia é o Deus de oprimidos,
de marginalizados, de escravos – sejam de que etnia forem.
De Javé, no Êxodo, se afirma que viu o sofrimento e ouviu o clamor dos
escravos hebreus (Êx 2:23s; 3:7,9; 6:5). Javé optou por um segmento
populacional específico, optou por ouvir o clamor de escravos, é o deus
daqueles que clama sob os fardos da injustiça, sob o açoite de feitores.
Se o termo optou provoca dificuldades, cabe lembrar que ele apenas atualiza um outro termo teológico que também gera polêmica, o termo elegeu
(cf., por exemplo, Dt 7:7-8). Por ser parcial em seu agir na história
é que Javé é um Deus universal. O Deus de hebreus não é universal
porque criou todas as pessoas, mas exatamente porque – na história –
opta por algumas dentre todas as pessoas e povos que criou. Na linguagem paulina, Deus é universal porque optou pelos pecadores, ou,
nas palavras de Jesus, “eu não vim chamar justos, mas pecadores”, referindo-se a publicanos e pecadores desprezados pelo Judaísmo oficial
de sua época – publicanos e pecadores, alguns dentre os hebreus da
época de Jesus (v. Mc 2:13-17). Como afirma Schwantes, “ao ser designado ‘deus dos hebreus’, Javé, de saída é designado como Deus universal. Como Deus concreto na história de um dos grupos de hebreus,
Javé é, potencialmente, Deus de todos os escravos. A teologia véterotestamentária, em seu nascedouro, não é, pois, racial ou nacional, mas universal porque, concreta e parcialmente, comprometida com as classes populares” (Teologia do Antigo Testamento, São Leopoldo, EST, p.33)
1.3. Javé é o Deus da Terra. Ao prometer libertação aos hebreus, Javé
desencadeou um projeto histórico de grandes proporções (Êx 3:8,17). A
questão crucial para os hebreus não era apenas a de sair do Egito, mas
sair para deixar de ser hebreu, sair para viver com liberdade e dignidade.
Possuir terra seria uma condição indispensável para o projeto de vida
dos hebreus. Tendo a terra, teriam onde viver com liberdade, onde
produzir seu próprio alimento, conseguir seu sustento, reproduzir a vida.
Por isso, Javé promete conduzi-los a “uma terra boa, terra que mana leite
e mel”. A vida em liberdade, porém, não é fácil. É vida em conflito. A
terra prometida era a terra dos cananeus, dos heteus, dos amorreus ...
Era uma terra dominada por cidades-estado, opressoras como o regime
egípcio. Portanto, Javé estimula os hebreus a um novo projeto missionário libertador. Não basta sair do Egito e resolver seu problema. Há que se ir a Canaã e solidarizar-se com os hebreus lá, construir na terra da opressão um novo povo, que implantasse a Lei da liberdade, a Lei de Deus.
1.4. Javé é o Deus (da) gente. O relato do êxodo fala de um Deus que
se compadece do sofredor (2;23s; 3:7,17). É Deus que vê, ouve, conhece, desce ... Os verbos usados no texto bíblico descrevem um profundo envolvimento pessoal de Javé com os hebreus. Tão profundo que implicava no endurecimento do coração de Faraó (Êx 7:3s; 9:16; cf. 7:14), na ira contra Moisés (Êx 4:14) e, depois, contra os próprios hebreus que se rebelam contra Javé no deserto. A liberdade soberana da opção divina flui com clareza espantosa nas suas relações com hebreus e com os opressores de hebreus. Javé opta por hebreus, mas não se submete a eles, permanece como o Senhor. Ao Senhor Moisés clama em benefício dos hebreus acovardados diante da Terra da promessa: “Agora, pois, rogo-te que a força do meu Senhor se engrandeça; como tens falado, dizendo: O Senhor é longânimo, e grande em misericórdia, que perdoa a iniqüidade e a transgressão, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração. Perdoa, pois, a iniqüidade deste povo, segundo a grandeza da tua misericórdia, e como também tens perdoado a este povo desde a terra do Egito até aqui” (Nm 14:17-29). Javé é um deus pessoal, cuja personalidade é vibrante, contagiosa. Movido por benignidade (compaixão, misericórdia) Ele age em prol dos aflitos que clamam, e entra em um relacionamento pessoal com eles – relacionamento
de aliança. “Na tua benignidade guiaste o povo que libertaste” (Êx 15:13a). Em Êx 19:3-6 a benignidade de Deus produz um pacto,
uma aliança, e os hebreus são chamados de ‘reino de sacerdotes e
nação santa”, linguagem deuteronômica, fiel à personalidade e ao projeto
histórico de Javé. A aliança não “nacionaliza” a libertação, pelo contrário,
na sua particularidade (nação santa) a re-universaliza (reino de
sacerdotes).
Sendo pessoal, Javé demanda resposta também pessoal de seu povo.
Aos hebreus ele prometeu e concedeu libertação, mas exigiu fé, exigiu
uma resposta comprometida com o Seu projeto de liberdade. No relacionamento de aliança exige santidade e sacerdócio aos povos – já exige “evangelização” desde o início. É essa “evangelização” que configura o povo judeu, pois é a fé comum – em Javé – que une várias etnias, vários grupos de hebreus em um só povo. Poderíamos esquematizar estas dimensões missiológicas do êxodo da seguinte forma:
JAVÉ POVO DE DEUS
Universalidade Parcialidade
Incomparabilidade Historicidade
Pessoalidade Socialidade
Benignidade Santidade
2. A soberania de Javé e a utopia da liberdade
Na reflexão teológica latino-americana, o Reino de Deus é outra chave
de leitura e eixo teológico do Antigo Testamento. Como no caso do êxodo, esta constatação também é um dado já comum na pesquisa teológica internacional. Deus reina! Javé é rei! São exclamações teológicas centrais para a fé do povo de Deus no Antigo Testamento. Esta é a própria idéia fundamental da redescoberta do reino de Javé na teologia do Antigo Testamento: Javé reina, o Reino de Deus é um conceito dinâmico, tem a ver com a ação de Deus na história e vida dos povos: “a aplicação a Javé da palavra rei não tem estabelecida a sua data exata, mas o sentido é claro desde o princípio: a partir dos acontecimentos salvíficos experimentados por Israel e atribuídos a Javé, Ele é conhecido como aquele que tem domínio sobre Israel e sua história” (SOBRINO, J. Cristología desde América Latina, 2a. edição, p. 32) Êxodo 15:18 representa suficientemente a essência da idéia do reino de Deus no Antigo Testamento: “Javé reinará eterna e perpetuamente”. O cântico do qual este verso faz parte é um tributo de adoração a javé pelos seus atos poderosos a favor dos hebreus. É um reconhecimento repetido mais tarde por Gideão (Jz 8), que se recusa a reinar sobre Israel, afirmando: “nem eu dominarei sobre vós, nem meu filho, mas o Senhor sobre vós dominará” (Jz 8:23).
2.1. A universalidade do reinado de Javé
O Salmo 47, um dos salmos do Reino de Javé (47; 93; 96-99), é um
grande convite a todo o cosmos para louvar e exaltar o Deus Javé. (a)
Nos versos 3-6 Javé é aclamado como o rei de Israel, o povo que ele
mesmo escolheu como objeto especial de seu amor eletivo. Através
deste povo Javé iria difundir seu governo a todos os povos da terra e a
todo o cosmos. Povo escolhido, os hebreus agora organizados como
povo, deveriam ser as primeiras testemunhas da soberania de Javé. (b)
Nos versos 3, 8 e 9 Javé é exaltado como o rei de todas as nações, aquele que subjugou povos a Israel. Porém, o domínio exercido não é o
de um déspota, mas o de parceiro de aliança: “os inúmeros príncipes e
povos devem se tornar um só povo; já não serão os de fora, mas de
dentro da aliança” (KIDNER, D. Salmos: Introdução e Comentário, São
Paulo, Vida Nova e Mundo Cristão, p. 199). (c) O domínio real de Javé
abrange, além de Israel e todos os povos, “toda a terra” (versos 2b e 7).
A expressão toda a terra aponta para o domínio cósmico de Deus: “nestas declarações, que na sua maior parte pertencem à tradição da soberania real de Deus, Javé aparece como aquele que garante a ordem
cósmica ... (aquele que tem) a soberania sobre o cosmos” (OTOSSON,
M. “erets”, Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids,
Eerdmans, vol. 1, pp. 394-395). Em síntese, Javé é rei de um povo peculiar, a fim de que todos os povos venham a ser parte desse um povo; é o rei de todo o Universo, aquele que garante a permanência da vida na des-ordem criada pelo pecado humano.1
2.2. O caráter utópico da soberania de Javé
A soberania de Javé é universal e seu domínio tem um caráter utópico2
que pode ser percebido, por exemplo, em Isaías 11:1-16 e 65:17-25. As
características principais dessa utopia podem ser descritas com brevidade e simplicidade: (a) no reinado de Javé haverá um perfeito relacionamento entre as pessoas e Deus, caracterizado por: prática de um governo justo (11:1-5), resposta de Deus às orações antes delas serem proferidas (65:24); louvor alegre e exuberante diante da majestade divina (65:17-19), e pleno conhecimento de Deus (11:9); (b) haverá um perfeito relacionamento social, caracterizado por: ausência de conflitos
pessoas e nacionais (11:10-16); ausência de tristezas (65:19); ausência
de mortalidade infantil (65:20); apoio à velhice (65:20). Ninguém trabalhará
para encher os cofres de terceiros, mas todos gozarão do fruto das
próprias mãos (65:22-23); não haverá carentes, pois todos terão terra,
trabalho e dignidade (65:21-22); (c) haverá um perfeito relacionamento
entre as pessoas e a natureza, caracterizado pela ausência de violência
e problemas ecológicos (11:6-8a; 65:25).
Sendo utópico, o reinado de Javé se nos apresenta como tarefa missionária, rearticulada e retomada por Jesus Cristo, e entregue à Igreja. “Jesus articula um dado radical da experiência humana, sua principal esperança e dimensão utópica. E promete que já não será utopia, objeto de expectativa ansiosa (cf. Lc 3:15), mas topia, objeto de alegria para todo o povo (cf. Lc 2:9)” (L. Boff, citado em SOBRINO, J. Cristología desde América Latina, p. 33)
Podemos representar graficamente o reinado de Javé, como eixo
teológico da missão, da seguinte forma:
JAVÉ REINA SOBRE PERFEITO RELACIONAMENTO ENTRE
seu povo pessoas e Deus
todos os povos povos e povos
toda a terra pessoas e a natureza
Neste esquema vemos, nos relacionamentos horizontais, as dimensões
da integralidade da missão da Igreja: seu povo, dimensão existencialreligiosa; todos os povos, dimensão sócio-econômica; toda a terra, dimensão cósmico-ecológica. E no eixo da verticalidade, vemos a superação de particularismos teológicos. Se nos restringimos à primeira dimensão, caímos no fundamentalismo; se à segunda, no secularismo; se à terceira, no misticismo naturalista.
Diante da multidimensionalidade da missão da Igreja, perante os inúmeros e profundos desafios que a realidade presente nos coloca, é preciso saber priorizar e organizar a ação missionária da Igreja. O Antigo Testamento nos oferece pistas concretas para construirmos os critérios do discernimento missionário: a benignidade e a soberania de Javé. A partir delas, nelas e por meio delas, pode o povo de Deus realizar a sua missão!
1 Veja o capítulo “Reino de Deus: Paradigma da Missão da Igreja” neste mesmo volume.
2 Para o conceito de utopia, v. HINKELLAMMERT, F. J. Crítica à Razão Utópica, São Paulo, Paulus.
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